Monday, April 28, 2008

Un texto de Francisco Ortega y un comentario de Francisco Vázquez

Por su interés, reproducimos aquí un interesante texto de Francisco Ortega y los comentarios de Francisco Vázquez:


O sujeito cerebral e o desafio da neurodiversidade

Francisco Ortega
Instituto de Medicina Social – UERJ


Meu cérebro é uma jóia

Para Bruce e Jin, neurodivinos

Autismo: Rotina palatina que podem praticar alguns gênios da precisão no curral dos fatos. É uma obsessão labiríntica repetida infinitamente. Proust sentimentalizou todo Combay a partir de uma migalha de madeleine molhada em uma xícara de chá. Espinosa constrói a existência e a essência de todo um universo a partir de uma “espiguinha de trigo


Nada sobre nós sem nós: Os estudos da deficiência e a retórica anticura


Para compreendermos o surgimento do movimento chamado de “neurodiversidade” devemos nos remeter ao campo dos chamados ‘estudos da deficiência’ (disability studies), os quais, nas últimas décadas, vem desenvolvendo uma área de reflexão sobre a deficiência (disability) que escapa ao discurso de médicos, educadores e especialistas diversos. O discurso acadêmico sobre a deficiência surge como posicionamento crítico sobre o discurso dos especialistas. Como se deduz do lema dos ‘estudos da deficiência’: “nada sobre nós sem nós” (nothing about us without us), o movimento é composto basicamente por pesquisadores ‘deficientes’ (disabled). Essa situação se repetirá, como veremos mais adiante, entre os idealizadores do movimento de Neurodiversidade, composto basicamente por autistas, especificamente os chamados ‘Aspies’ (em referência aos portadores da síndrome de Asperger). O campo acadêmico dos estudos da deficiência surge no mundo anglo-saxão no fim dos anos setenta do século passado, coincidindo com o movimento antipsiquiátrico, o surgimento do feminismo organizado e dos movimentos de raça, tais como o black power. Desde sua constituição, a área dos estudos da deficiência tem efetuado um deslocamento desde uma abordagem marxista inicial no começo dos anos setenta, ligada à redescoberta da obra de Gramsci no Reino Unido, para posições mais recentes próximas do pós-estruturalismo e do construtivismo social. Trata-se de um deslocamento análogo aos efetuados nas áreas de gênero, sexualidade e raça, nas quais os estudos da deficiência se inspiram.
Em 1975 a Union of the Physical Impaired against Segregation (UPIAS), publica um texto seminal, Fundamental Principles of Disability, que lançará as bases do chamado ‘modelo social da deficiência’ (social model of disability). A novidade teórica fundamental é a divisão entre “invalidez (impairment) e “deficiência” (disability). Enquanto a primeiro remete à condição física da pessoa, a deficiência por sua vez faz referencia a um vínculo imposto por uma sociedade sobre o indivíduo considerado inválido: “Nossa posição acerca da deficiência é bastante clara e coerente com os princípios acordados. Na nossa opinião, é a sociedade que desabilita pessoas com alguma invalidez física. A deficiência é algo imposto sobre a invalidez. A propósito, nós somos desnecessariamente isolados e excluídos de uma participação completa na sociedade. Por isso, pessoas com deficiências constituem um grupo oprimido na sociedade” (UPIAS, 1975). A dicotomia ‘invalidade/deficiência’ (impairment/disability) é construída de maneira análoga à dicotomia ‘sexo/gênero’, sendo o primeiro um atributo biológico e o segundo uma construção social (Corker e French, 1999b).
Basicamente, o modelo social da deficiência surge como alternativa ao modelo hegemônico médico-individual com sua ênfase no diagnóstico e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito dependente. Mike Oliver (1990) denomina esse modelo de “modelo da tragédia pessoal”. Para os teóricos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia pessoal; é um problema social e político (Davis, 2000). Ela não existe para além da cultura e do horizonte social que a descreve como tal e nunca pode ser reduzida ao nível biológico e/ou patológico. Para eles, só existem atributos ou características do indivíduo considerados problemáticos ou desvantajosos em si por vivermos em um ambiente social que considera esses atributos como desvantajosos. Assim, por exemplo, andar de cadeira de rodas é um problema apenas por vivermos em um mundo cheio de escadas, e consideramos deficientes indivíduos que não olham nos olhos quando se comunicam, como é o caso dos autistas, apenas por que nossa sociedade estabelece o contacto visual como um elemento básico da interação humana (Young, 2004; Antonetta, 2005).
Nos últimos anos, a ‘virada lingüística’ (linguistic turn) chegou também aos estudos da deficiência, com a incorporação das teorias pós-estruturalistas e a construção discursiva da deficiência (Corker and Shakespeare, 2004a; Corker and French, 1999a). A influência de autores como Derrida e Foucault no campo permite compreender como a normalização pressupõe a deficiência para sua própria definição: o indivíduo só pode ser considerado ‘normal’ por oposição ao indivíduo considerado ‘inválido’. A deficiência aparece como construção cultural que implica o estatuto ‘natural’ do ‘normal’. Mas do que um fato biológico, constitui uma maneira de regulamentar os corpos considerados normais e corresponde à recusa da sociedade em aceitar a variabilidade do corpo humano. Por outro lado, embora a invalidade fosse ‘real’ antes dos discursos médicos, científicos, psiquiátricos e jurídicos sobre ela, a proliferação desses discursos possibilitou o surgimento da deficiência, a qual não existia antes desses discursos. (Corker, and Shakespeare, 2004b). Nesse sentido, um dos teóricos mais representativos dos estudos da deficiência, Lennard Davis (1995: 51), faz no livro Enforcing Normalcy a chocante afirmação de que “Europa tornou-se surda durante o século XVIII”. Para o autor, a deficiência é um processo social que corresponde a uma maneira hegemônica de pensar sobre o corpo, a qual alcançou uma relativa organização por volta do século XVIII. Antes dessa data, existiam obviamente pessoas surdas e seus familiares, mas não existiam discursos nem políticas públicas sobre e para a surdez, assim como não havia nenhum tipo de instituições educacionais para surdos. Como conseqüência, os surdos não eram constituídos como um grupo. Só após a introdução das políticas e instituições educacionais para surdos (os quais, tendo a maioria nascida de pais que ouviam, não se viam a si mesmo como parte de uma comunidade), eles são constituídos como grupos, desenvolvendo um senso de comunidade, um subgrupo ou comunidade étnica no meio da nação.
Surge então um nacionalismo surdo como resistência à ‘cultura ouvinte’ (audist culture), que contesta o que Davis define como um dos mitos fundacionais da ‘cultura indeficiente’ (ableist culture), qual seja, acreditar que a norma entre os seres humanos é ouvir e falar, comunicar-se por médio de fala e audição. No século XIX, os surdos eram considerados estrangeiros vivendo nos Estados Unidos, e movimentos de surdos organizados cogitaram fundar um estado de surdos no oeste do país. Jane Elizabeth Groom propôs nos anos de 1880 que os surdos deixassem a Inglaterra e criassem um estado de surdos no Canadá (ibid., 84-5). Esses exemplos testemunham que os surdos se viam como uma comunidade étnica, uma minoria lingüística convivendo dentro do mesmo país. Na atualidade, o movimento surdo reivindica o senso de comunidade, considera-se um subgrupo lingüístico convivendo com outras minorias lingüísticas (latinos, italianos, entre outros, no caso dos Estados Unidos) que tem que ser respeitada. Isso tem conduzido em alguns momentos a uma certa tensão com os movimentos de deficientes por não considerarem a surdez como uma deficiência. Os surdos “sentem que sua cultura, linguagem e comunidade os constituem como uma sub-nacionalidade, totalmente adequada, fechada em si mesma, auto-definidora dentro de uma estrutura maior do estado ouvinte” (Ibid., xiv). Como conseqüência, numa época em que o screening fetal torna-se cada vez mais nossa realidade, abortar uma criança que sabemos que nascerá surda seria para eles análogo a abortar uma criança por falar espanhol, chinês, ser negra ou homossexual. Evidentemente esses casos nos parecem chocantes e são repudiados pela maioria das pessoas. Mas, e se se coloca a questão da possibilidade de abortar uma criança com síndrome de Down, ou que vai nascer sem algum membro, ou ser autista, isto é, casos nos quais um número maior de pessoas mostraria uma inclinação para o aborto? Aí a questão fica mais complexa como veremos mais adiante no caso do autismo. Por outro lado, é possível pensar em situações em que pais surdos de nascença decidissem abortar fetos se soubessem que nasceriam ouvintes, de maneira semelhante ao que já está acontecendo no caso de pais de crianças surdas de nascença envolvidos em querelas judiciais exigindo que não seja realizado um implante coclear nos seus filhos. O aumento da consciência dos surdos (e de outros ‘deficientes’) pode levar e está levando a tornar realidade essas possibilidades (Elliot, 2003).
O exemplo dos surdos é muito significativo para entender o movimento da neurodiversidade, como será mostrado mais adiante, o qual, em muitos aspectos assemelha-se ao movimento surdo. A tomada de consciência desse movimento (e de deficientes em um sentido mais genérico, incluindo a cultura autista) vem produzindo processos de ‘coming out’ deficiente, análogos aos ‘coming outs’ de gays, lésbicas e negros, declarando um ‘orgulho surdo’ que remete ao orgulho gay, lésbico ou negro, o qual corresponde na neurodiversidade à declaração do orgulho autista, como veremos. O surgimento do ‘Orgulho surdo’ (Deaf Pride) se remonta ao ano de 1972, quando Bárbara Kannapel criou a organização do mesmo nome, dedicada a promover a consciência dos surdos. Os sentimentos de submissão, depreciação e vergonha surda, comuns até essa época, deixam lugar a um movimento de afirmação identitária, auto-estima e orgulho, em uma época que via tanto a legitimação científica da língua de sinais como um ambiente social tolerante com a diversidade cultural e a afirmação de todo tipo de minorias. “Os anos 70 presenciaram a ascensão não apenas do Orgulho Surdo, mas do Poder Surdo”, escreve o neurologista Oliver Sacks. “Emergiram líderes entre os outrora surdos passivos. Surgiu um novo vocabulário, com palavras como ‘autodeterminação’ e ‘paternalismo’. Os surdos, que antes haviam aceito as caracterizações de si mesmos como ‘inválidos’ e ‘dependentes’ – pois era assim que tinham sido considerados pelos ouvintes – agora passavam a julgar-se poderosos, uma comunidade autônoma” (Sacks, 2002: 164).
Quando um grupo social é estigmatizado pela maioria da sociedade, a autodeclaração da identidade constitui um processo de ‘coming out’. A afirmação ‘sou deficiente’ (surdo, cego, autista, entre outros) constitui uma afirmação de auto-categorização, um processo de subjetivação e de formação de identidade. Para os teóricos dos estudos da deficiência, essa afirmação permite um deslocamento do discurso dominante da dependência e anormalidade para a celebração da diferença e o orgulho da identidade deficiente (Swain & Cameron, 1999; Corker, 1999). Trata-se tanto de um compromisso coletivo e político de protesto contra as barreiras sociais incapacitantes encaradas pelos indivíduos com algum tipo de invalidez, como de uma transformação da identidade pessoal vivenciada com orgulho. Além dos impasses que as políticas identitárias apresentam, aos quais aludirei mais adiante, parece-me importante ressaltar uma questão recorrente associada ao enaltecimento da identidade e do orgulho deficiente. Pois, freqüentemente a afirmação identitária está ligada à recusa da cura, a qual é vista como uma forma de combater a diferença e a diversidade do corpo e do cérebro humano. O ‘movimento anticura’ constitui um desafio apresentado que ultrapassa o âmbito mais estrito dos deficientes, suas famílias, médicos e cuidadores, estendendo-se ao âmbito das políticas públicas de saúde e educação. O argumento básico é o seguinte: se a deficiência é um fenômeno criado socialmente e perpetuado culturalmente, então também a cura e os valores a ela associados são igualmente socialmente construídos: “Se você não acreditar que há deficiência, se não acreditar que há algo que necessita ser ‘curado’ ou prevenido geneticamente – então você será igualmente libertado da necessidade de cura” (Cheu, 2004: 209).
Os teóricos dos estudos da deficiência denunciam um modelo utópico de perfeição corporal e cura no qual a deficiência não existe. Na cultura somática contemporânea ou biossociabilidade, as ações individuais passam a ser dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude, entre outros. Todo um vocabulário médico-fisicalista baseado em constantes biológicas, taxas de colesterol, tono muscular, desempenho físico, capacidade aeróbica populariza-se e adquire uma conotação “quase moral”, fornecendo os critérios de avaliação individual. Ao mesmo tempo todas as atividades sociais, lúdicas, religiosas, esportivas, sexuais são resignificadas como práticas de saúde. O que alguns autores denominaram de healthism ou santé-isation, e que pode ser traduzido como a ideologia ou a moralidade da saúde, exprime essa tendência. Segundo essa ideologia, a saúde tornou-se também um valor absoluto ou padrão para julgar um número crescente de condutas e fenômenos sociais (Crawford, 1980: 381). Como resultado, contemplamos as doenças que retorcem a figura humana como sinônimo de fracasso pessoal. “É uma religião secular”, salienta David Morris (2000: 159), “da qual os deficientes e os desfigurados estão, evidentemente, rigorosamente excluídos a não ser que estejam dispostos a representar o papel ossificado designado para eles nos reality-shows como modelos corajosos de ‘ajustamento pessoal, esforço e realização’”. Historicamente as deficiências estavam ligadas ao crime, ao mal, às aberrações (Foucault, 1999). Os estereótipos atuais contra os gordos, idosos e outras figuras que fogem do padrão do corpo ideal têm o mesmo efeito estigmatizador e excludente. A obsessão pelo corpo perfeito faz aumentar o preconceito e dificulta o confronto com o fracasso de não atingir esse ideal, como testemunham anorexias, bulimias, distimias e depressões. Essa fixação produz e reforça as doenças debilitantes (Ortega, 2007). Morris aponta com razão que o modelo biomédico que sustenta essa obsessão implica assumir “que há algo errado com os portadores de deficiências” (2000: 162).
Um exemplo histórico resulta extremamente revelador dessa tendência, qual seja, a negação e encobrimento da deficiência do presidente americano Franklin Delano Roosevelt que sofria de poliomielite. Roosevelt era apresentado publicamente como modelo de recuperação e triunfo sobre a deficiência física, situação que se assemelharia à recuperação e triunfo dos EUA sobre a época da depressão. Ele teve poliomielite, sim, mas conseguiu vencer a doença. A obsessão de Roosevelt de não ser visto como deficiente conduziu a uma enorme parafernália de estratégias que incluíam desde diversas manobras para ocultar cadeiras de rodas, muletas ou bengalas usadas para caminhar, até a destruição por parte do serviço secreto de fotos ou filmes nos quais o presidente era alçado (o presidente nunca era alçado em público). Nas imagens veiculadas pela mídia, o presidente aparecia freqüentemente com um charuto na boca, nunca numa cadeira de rodas. A obsessão com negar sua deficiência se arrasta até nossos dias, como se depreende da controvérsia em torno à edificação do seu memorial. Membros da comissão encarregada da construção e da família de Roosevelt não cederam às pressões de grupos de ativistas deficientes de que o presidente aparecesse em alguma das estatuas e imagens desenhadas com a cadeira de rodas, muletas ou bengalas que sempre usava (Davis, 1995). Roosevelt construiu sua imagem como o ‘aleijado curado’ (cured cripple), a qual ecoou até nossos dias na retórica ‘Irei andar de novo - tudo-é-possível’ de um Christopher Reeve, o ator que representava o Superhomem, outro mito emblemático da sociedade americana. Os corpos anormais e deficientes devem ser exorcizados na construção de uma imagem nacional que pressupõe um ideal de perfeição corporal. É nesse contexto que se situa a retórica anticura defendida por diversos teóricos e ativistas do movimento deficiente. Vejamos a seguir, como esses desdobramentos constituem o pano de fundo para o recente surgimento do movimento da neurodiversidade.

Transtornos do espectro autista e neurodiversidade

Apesar de podermos utilizar o termo ‘neurodiversidade’ em um sentido amplo, para referirmos aos diversos tipos de transtornos neurológicos como são descritos, por exemplo, nos livros de Oliver Sacks (que não usa o termo), ou de maneira mais estrita em relação ao autismo, transtorno bipolar, ansiedade, depressão, e ao transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), como pretende Susanne Antonetta (que o usa no seu livro, Mind Apart. Travels in a Neurodiverse World), o termo é usado geralmente para se referir aos transtornos do espetro autista, e mais especificamente aos chamados de ‘autismo de alto funcionamento’ (high functioning autism), identificado amiúde com à síndrome de Asperger.
Acredito que o surgimento do termo e do movimento de ‘neurodiversidade’ na virada do século XXI deve ser analisado a partir de um marco sócio-cultural e histórico mais amplo que incorpore por um lado, a história e os desdobramentos dos estudos da deficiência e dos movimentos de deficientes, aos quais tenho me referido acima, como por outro lado o impacto crescente no imaginário cultural dos saberes e práticas neurocientíficas com o paradigma do sujeito cerebral e a expansão da neurocultura e as neurossociabilidades, às quais me referirei mais adiante.

A história do movimento de neurodiversidade, e mais especificamente em relação à cultura autista, está ligada ao deslocamento das concepções psicanalíticas para uma concepção biológica e cerebral do transtorno autista. Dos anos de 1940 a 1960 predominaram as explicações psicanalíticas do autismo na teoria e clínica psiquiátrica. De Leo Kanner no seu artigo seminal, “Os distúrbios autísticos do contato afetivo”, de 1943, até Bruno Bettelheim, Margareth Mahler e Francis Tustin, o autismo foi compreendido em termos de falhas no estabelecimento das relações objetais precoces do indivíduo, especialmente com os pais. Isso não quer dizer que ainda hoje não existam explicações psicanalíticas do transtorno autista, predominantemente do campo lacaniano. No entanto, é inegável que desde os anos 60 vem se produzindo um deslocamento para explicações orgânicas, especialmente cerebrais do transtorno, culminando em 1980 com a inclusão do autismo na rubrica de Transtornos Abrangentes do Desenvolvimento, separando-se definitivamente do grupo das psicoses infantis, na terceira edição do DSM (DSM-III). Desde então, e mais especificamente no mundo anglo-saxão, as compreensões neurológicas e genéticas do transtorno dominam o campo psiquiátrico. Não pretendo entrar no mérito das novas concepções e a recusa do modelo psicanalítico, embora a avalanche de dados e trabalhos empíricos produzidos desde os anos 70 vem tornando difícil acreditar que não exista algum componente orgânico no transtorno, dando assim uma relevância às explicações genéticas e cerebrais e ofuscando as concepções psicanalíticas que rechacem esse componente. Mas o que me parece mais importante para os objetivos deste texto, pois está na base do surgimento dos movimentos de neurodiversidade e da cultura autista, é que nas explicações psicanalíticas do transtorno, e mais especificamente no caso de dois dos seus principais teóricos, Leo Kanner e Bruno Bettelheim, o autismo era concebido exclusivamente em termos negativos, focalizando na culpa dos pais, os quais teriam falhado no estabelecimento de relações objetais precoces. A famosa ‘mãe geladeira’ de Kanner, ou as metáforas de “fortalezas vazias”, “tomadas desligadas”, “conchas”, “carapaças”, “ovos de pássaros” e “buracos negros” usadas pela tradição psicanalítica para se referir às crianças autistas, remetem para uma visão negativa que enfatiza as idéias de déficit, impossibilidade e deficiência (Cavalcanti, Rocha, 2001).
Desde meados de 1940 até pelo menos meados de 1960 houve no mundo anglo-saxão uma verdadeira “orgia de ataques aos pais” (orgy of parent-bashing) usando a expressão de Edward Dolnick (1998: 184), que dificultou a aparição de algum tipo de organização de autistas e/ou de seus familiares. No seu livro, Dolnick destaca que os pais absorveram as acusações e suportaram pacientemente a culpa não apenas pela hegemonia médica e sócio-cultural do paradigma psicanalítico, mas – e o que é mais importante – devido ao fato de que, frente às explicações orgânicas que remetiam para uma certa inevitabilidade, uma sentença definitiva, a abordagem psicológica parecia oferecer algum tipo de esperança. “Havia uma parte de mim que queria acreditar em Bettelheim” declara Annabel Stehli, mãe de filha autista, após a leitura de A fortaleza vazia de Bruno Bettelheim, “porque isso significaria que se eu melhorasse, Georgie iria melhorar. (...) Se eu mudasse, Georgie iria melhorar e eu queria que minha filha melhorasse” (apud, Dolnick, 1998, 205-6). O preço a pagar era muito caro, como a mesma Stehli reconhece: “Aqui havia alguém assassinando minha personalidade (…) Era, provavelmente, como um judeu na Alemanha em 1936 lendo algo escrito por Hitler sobre o que são os judeus” (ibid., 179).
O deslocamento do modelo psicanalítico e a aproximação das neurociências possibilitou que os pais fossem desresponsabilizados e desimplicados dos destinos subjetivos dos filhos (Cavalcanti, Rocha, 2001). Apesar das críticas do modelo psicanalítico a essa aparente ‘desimplicação’ e da aproximação das neurociências, é precisamente devido ao deslocamento do paradigma psicanalítico que surgiram tanto os movimentos de pais e profissionais que buscam uma cura para o autismo e apóiam terapias comportamentais e psicofarmacológicas como os movimentos da neurodiversidade. Estes últimos rejeitam as explicações psicológicas negativistas e culpabilizantes, afirmando um autismo cerebral, na base de uma identidade autista vivenciada com orgulho. Voltarei mais adiante à vinculação do autismo cerebral com a afirmação identitária.
As explicações cognitivistas propostas desde os anos 80, especificamente por Alan Leslie, Uta Frith e Simon Baron-Cohen baseiam-se na idéia de “cegueira mental” (mindblindness) presente nas crianças autistas. Essas crianças careceriam de uma ‘teoria da mente’, isto é, da capacidade de atribuir estados intencionais a terceiros, de colocar-se no lugar do outro, necessária para a interação social. Esse modelo é criticado pelos ativistas do movimento autista por se tratar de um modelo homogêneo que não dá conta da diversidade e singularidade dos indivíduos. Assim, frente ao modelo da ‘consciência como a minha’ (like-me awareness), implícito no modelo da teoria da mente do cognitivismo, os autistas, ou ‘neuro-atípicos’ apostam em uma ‘consciência não como a minha’ (not-like me awareness) mais sofisticada: “A teoria da mente neurotípica acredita que todos pensam como eu, enquanto a teoria neuroatípica consideraria a mente de todos como ‘vasta e misteriosa’, diferente da minha própria” (Antonetta, 2005: 167).
Curiosamente um dos proponentes do modelo da ‘teoria da mente’, Baron-Cohen (2000), manifestou-se recentemente a favor de substituir o modelo da ‘deficiência’ pelo o da ‘diferença’ ao considerar o autismo não como uma deficiência a ser curada, mas como um ‘estilo cognitivo diferente’ (different cognitive style), comparável à sinistralidade, aproximando-se das teses da neurodiversidade.
Esse deslocamento do modelo da deficiência para o da diferença na caracterização do transtorno autista permite compreender o surgimento recente dos movimentos de neurodiversidade.
Judy Singer, criadora do termo ‘neurodiversidade’ em 1999, acredita que o aparecimento do movimento tornou-se possível por vários fenômenos, principalmente a influência do feminismo, que forneceu às mães a autoconfiança necessária para questionar o modelo psicanalítico dominante, que as culpava pelo transtorno autista dos filhos; a ascensão de grupos de apoio aos pacientes e a subseqüente diminuição da autoridade dos médicos, possibilitado, sobretudo, pelo surgimento da Internet, que facilitou tanto a organização dos grupos como a livre transmissão de informações sem mediação dos médicos; e, finalmente, como vimos no início do texto, pelo crescimento de movimentos políticos de deficientes, movimentos de autodefesa e auto-advocacia, especialmente de surdos, que estimulou a auto-representação da identidade autista (Lage, 2006).

Os movimentos pró- e anticura no autismo

A história do movimento de auto-advocacia do autismo é precedido pela publicação de relatos autobiográficos de indivíduos autistas. Temple Grandin e Donna Willians são possivelmente as mais conhecidas. Já desde meados dos anos de 1960 aparecem as primeiras associações de pais de autistas. Entre as pioneiras se encontra a British Society for Autistic Children (conhecida atualmente por The National Autistic Society). Em 1964, Bernard Rimland autor de Infantile Autism: The Syndrome and Its Implications for a Neural Theory of Behavior, funda a Autism Society of America. Logo surgiriam associações semelhantes em muitos países. Mas é o surgimento da Internet no início dos anos 90 do século passado que marca o principal ponto de inflexão nas organizações de auto-advocacia. Entre as pioneiras se encontra a Autism and Developmental Disabilities List (AUTISM List) criada em 1991 por Ray Kopp e o Dr. Zenhausern na Universidade de St. John no formato de lista de Internet. A lista foi em grande medida responsável pela difusão da terapia comportamental (Análise Aplicada do Comportamento - Applied Behavioral Analysis – ABA). A obsessão pela cura e pelas formas de adaptar às crianças autistas tem dado o tom na lista. Esse padrão que enfatiza exclusivamente a procura pela cura levou a uma série de críticas de adultos no espectro de transtornos autísticos, os quais se sentem incompreendidos e desconsiderados pelos especialistas e os familiares de autistas. Como conseqüência, surgiu em 1992 entre os autistas australianos e dos EUA, a Autism Network International (ANI), criada pelos autistas Jim Sinclair e Donna Williams (Sinclair, 2005). Apesar de não vetar a entrada a não-autistas, a tomada de decisões deveria estar na mão dos autistas: “Por autistas para autistas” (By autistic for autistics) tem sido um valor central da ANI desde sua origem, reproduzindo a ideologia dos estudos da deficiência: ‘nada sobre nós sem nós’ (nothing about us without us). Essa exigência da presença de autistas na tomada de decisões é reivindicada freqüentemente pelos ativistas do movimento (sendo a maioria portadores da síndrome de Asperger) na crítica aos movimentos de associações de pais e especialistas dos movimentos pró-cura. Para os primeiros, é uma questão de empowerment do movimento, de autodeterminação na base da auto-advocacia. Obviamente, não se trata de que os pesquisadores e profissionais trabalhando com autismo devam se encontrar eles mesmos dentro do espectro do transtorno, mas de que na tomada de decisões, na auto-organização social e política do movimento estejam portadores do transtorno. O que não resolve o problema, visto que ativistas do movimento e organizações de pais e profissionais possuem, como veremos, concepções antagônicas do que seja o autismo, quais sejam, doença a ser tratada ou diferença a ser respeitada e cultivada. Isso não impede que as críticas do movimento deslegitimem a posição dos grupos pró-cura com o argumento de que estão decidindo por eles. Os grupos de pais e profissionais objetam que a maioria dos autistas, especialmente as crianças, não tem condição de saber qual é decisão correta, e que as vozes do movimento são de indivíduos que não deveriam ser considerados autistas. São acusados de estar no extremo mais funcional do espectro do transtorno, beirando a ‘normalidade’, uma situação muito díspar da vivida pela maioria das crianças autistas. Tratar-se-ia de uma minoria que se advoga o direito de falar no nome de uma maioria que não possui as capacidades cognitivas e emocionais requeridas para essa tomada de decisão.
O objetivo das listas criadas por autistas é contestar a visão negativa do autismo representada nas primeiras listas de profissionais e familiares de crianças autistas, cuja obsessão com a cura é considerada um desrespeito da forma de ser autista. Se o autismo não é uma doença e sim uma diferença, a procura pela cura constitui uma tentativa de apagar a diferença, a diversidade. É por isso que os movimentos de anticura vêm ganhando força dentro dos movimentos de auto-advocacia autista (Sinclair, 2005). Na contramão se encontram organizações como Cure autism now, fundada em 1995, por Jonathan Shestack and Portia Iversen, pais de uma criança autista, e que reúne pais, médicos e cientistas consagrados a acelerar o ritmo da pesquisa biomédica do autismo, levantando fundos para a pesquisa e a educação. Esta organização vem sendo criticada duramente por ativistas do movimento autista, que a acusam de demonizar os autistas e assustar as suas famílias, promovendo visões estreitas do transtorno e não escutando as experiências de adultos autistas. Um exemplo ilustrativo dessa crítica aparece no website Autistic.org, que mostra uma lixeira cheia de fetos autistas mortos com as iniciais de Cure autism now , diante de uma clínica de abortos com a legenda “O verdadeiro significado da ´prevenção do autismo`” (www.autistic.org).
Frank Klein, autor do website Autistic advocacy, acusa às organizações tais como Cure Autism Now e Defeat Autism Now de assumir que todo o mundo concorda com a idéia de que o autismo seja uma coisa terrível que deva ser eliminada. Klein compartilha com o movimento pró-cura o desejo de que o sofrimento de autistas deixasse de existir bem como a incapacidade dos autistas de cuidar de si e viver de maneira independente. No entanto, refletindo acerca dos motivos pelos quais considera essas organizações como ‘inimigas’, faz a seguinte observação: “Bem, a resposta não é difícil de se ver. Se você olhar, está bem ali, nos nomes de seus grupos. Se eles nos aceitassem, de verdade, como indivíduos igualmente válidos, eles não estariam tentando nos curar ou nos derrotar. Intencionalmente ou não, é assim que interpreto seus esforços e não estou sozinho nessa linha de pensamento. Ser autista é intrínseco, faz parte de quem a pessoa é e não poderia ser removido (ainda que existisse cura) sem danificar irreparavelmente a pessoa que existia anteriormente. Curar-me é destruir-me e me substituir por outra pessoa... alguém mais normal, alguém que o subgrupo mais intolerável das pessoas normais possa tolerar melhor. Curar o autismo significa erradicar do planeta pessoas como eu...eliminar completamente o meu tipo. Eu vejo isso com um genocídio. Não vejo a eliminação do meu tipo como a “solução final” para os problemas que vêm atrelados ao autismo” (ibid.).

Neurodiversidade e cultura autista
Na citação anterior, Klein toca no credo básico do movimento da neurodiversidade. O termo foi, como assinalado, cunhado pela socióloga e portadora da síndrome de Asperger Judy Singer em 1999 num texto com o sugestivo título de “Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida?’ De um ‘problema sem nome’ para a emergência de uma nova categoria de diferença” (‘Why can´t you be normal for once in your life?’ From a ‘problem with no name’ to the emergence of a new category of difference). Como lemos no início da entrada ‘neurodiversity’ em wikipedia e nas dúzias de sites dedicados ao movimento, o conceito tenta salientar que a ‘conexão neurológica’ (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente) não é, como vimos, uma doença a ser tratada e se for possível curada. Trata-se antes de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais, entre outras). Eles são ‘neurologicamente diferentes’, ou ‘neuroatípicos’. Indivíduos diagnosticados com autismo, especialmente portadores da síndrome de Asperger são a força motriz por trás do movimento. Para eles, como já foi mencionado, o autismo não é uma doença, mas uma parte constitutiva do que eles são. Procurar uma cura implica assumir que o autismo é uma doença, não uma ‘nova categoria de diferença humana’, usando a expressão de Singer (1999: 63). Se a neurodiversidade ou ‘neuroatipicidade’ é uma doença, então a ‘neurotipicidade’ também é. Nesse sentido, vale a pena conferir na web o irônico site do Insttituto para o estudo dos neurologicamente típicos (Institute for the Study of the Neurologically Typical) (http://isnt.autistics.org). O autor do ‘instituto’ confessa que criou o site como expressão do “ultraje autista”, depois de conferir que o que é escrito por “especialistas” e “profissionais” sobre o autismo é “arrogante, insultante e simplesmente errado”. No site, a ‘síndrome neurotípica’ é caraterizada como “um transtorno neurobiológico caracterizado pela preocupação por questões sociais, delírios de superioridade e obsessão com a conformidade. Além disso, os indivíduos neurotípicos (NT) “freqüentemente assumem que sua experiência do mundo é ou a única ou a única correta. Neurotípicos acham difícil ficar sozinhos e, geralmente, são aparentemente intolerantes as menores diferenças no outros”. No site apreendemos que 9625 em cada 10,000 indivíduos são neurotípicos e que não existe cura conhecida para a ‘síndrome neurotípica’. Encontramos também um “Online NT Screening Test”, questionário com numerosas perguntas que permitem diagnosticar a ‘síndrome neurotípica’. O objetivo desse site é, obviamente, desconstruir a retórica pró-cura de muitas organizações de pais e profissionais. Visa-se mostrar que o absurdo de tentar curar ou diagnosticar a ‘normalidade’ - que aparece aqui na versão cerebral de ‘neurotipicidade’ - é semelhante ao absurdo de tratar de curar o autismo. Por que nos chocariam as tentativas de curar a ‘neurotipicidade’ (possibilidade apresentada ironicamente no site), enquanto que aceitamos sem pensar a retórica pró-cura de associações como Cure Autism Now, Defeat Autism Now ou Autism speaks que, no fundo, defendem uma determinada ‘normalidade’ ou ‘tipicidade’ cerebral? Curar um neurotípico seria o mesmo que curar um indivíduo gay, negro, canhoto ou autista, afirmam os defensores da neurodiversidade. Para eles, o autismo não é como um câncer que deva ser curado, estando mais para as tentativas de curar a sinistralidade, ou a homossexualidade (Harmon, 2004a, 2004b, 2004c). Se, como vimos, a deficiência é uma construção social, a cura também é. Assumir o autismo como diferencia libera os indivíduos do desejo ou da necessidade da cura, o que resulta muito importante em uma época na qual existem grandes chances de dispormos em breve de testes genéticos que poderão impedir crianças autistas de nascer.
Em torno dos padrões autísticos de pensamento e de interesses vem aumentando o número de páginas da internet que exprimem a ‘cultura autista’. Como vemos ao clicar o termo ‘cultura autista’ e ‘neurodiversidade’ no google encontramos uma quantidade enorme de sites que afirmam a identidade autista (e mais especificamente Aspie, em referência à síndrome de Asperger) e celebram essa subcultura, os quais incluem desde indicações de literatura de ficção e especializada sobre os mais variados aspectos do espectro do transtorno até organizações de apoio, blogs e mecanismos de chat que facilitam a interação entre autistas, esclarecem elementos do transtorno, ajudam a compartilhar experiências, e até mesmo encontrar amigos ou futuros companheiros e cônjuges. Para a famosa autista Temple Grandin, o casamento entre autistas é natural, visto que, “os casamentos funcionam melhor quando duas pessoas com autismo se casam ou quando a pessoa se casa com um deficiente ou com um parceiro excêntrico...Eles se atraem porque seus intelectos trabalham em um comprimento de onde similar” (apud Silberman, 2001). O objetivo fundamental dos movimentos é promover a conscientização e o empowerment da cultura autista, que inclui a comemoração do ‘Dia do Orgulho Autista’ (Autistic pride day), que, inspirado pelo dia do orgulho gay, é festejado no dia 18 de junho como celebração da neurodiversidade dos autistas. Desde 2005 o ‘Dia do Orgulho Autista’ teve os seguintes temas: ‘Aceitação, não cura’ (2005); “Celebrando a neurodiversidade” (2006); “Autismo fala. É hora de escutar” (2007). No Brasil, o recentemente criado Movimento Orgulho Autista Brasil, integra uma rede de países que comemora a neurodiversidade nessa data. Como Prova disso é o fato que o principal evento mundial do ‘Dia do Orgulho Autista’ de 2005 foi realizado em Brasília. Na contramão, se encontram também no Brasil as associações de pais e profissionais que buscam cura para autismo.
A proliferação nos últimos anos dos movimentos da neurodiversidade e ao aumento de sua exposição à mídia, tem intensificado o embate político entre os ativistas do movimento autista e as organizações de pais e profissionais dos grupos pró-cura. Recentemente os debates têm subido de temperatura vertiginosamente. Em 2004, a publicação por Amy Harmon de uma série de artigos no New York Times sobre a neurodiversidade deu grande visibilidade ao movimento (Harmon, 2004a, 2004b, 2004c). Neles, é apresentada a posição dos ativistas autistas que consideram o autismo como parte essencial do que eles são e se opõem à cura. Apesar de fazer referência também às críticas de pais e especialistas ao movimento, os artigos provocaram uma série de críticas dos movimentos pró-cura e de pais de crianças autistas. Numa emotiva carta aberta ao New York Times, Kate Weintraub, mãe de uma criança autista, critica a parcialidade da visão apresentada favorável à neurodiversidade. Sua posição pode ser resumida na frase “Autismo é um transtorno, não é um estilo de vida ou apenas um jeito diferente de ser”. Ela também se refere às acusações de alguns ativistas autistas que culpabilizariam os pais pela situação dos filhos, os quais, para os mais radicais, deveriam ser afastados dos genitores. Os pais são “ridicularizados como ‘obcecado pela cura’ (curebies) e retratados como escravos da conformidade, tão ansiosos para que seus filhos pareçam normais que eles não conseguem respeitar sua forma de comunicação” (Harmon 2004c). Essas observações provocam a ira de Weintraub e outros ativistas dos movimentos pró-cura, para quem os ativistas “não deveriam falar como se meus filhos fossem como eles e necessitassem ser salvos de seus pais”. Embora os movimentos autistas possuam uma retórica claramente antipsicanalista, ecoam em algumas afirmações o tom culpabilizante que caracteriza a visão psicanalítica. Se a psicanálise acusava os pais de crianças autistas de ser frios, obsessivos e mecânicos no tipo de atenção dada aos filhos, o movimento de autistas os acusa de ser intolerantes com seu modo de ser (neuro)diferente, de não amá-los do jeito que eles ‘são’ e de querer falar em nome deles. Assim, os pais não estariam aflitos pelo autismo do filho, mas pela perda do filho que esperavam e esperam poder ter (Sinclair, 1993). A ‘parentectomy’ proposta por Bettelheim ecoa nas acusações do movimento autista.
O lançamento recente do filme Autism Every Day, produzido por Lauren Thierry e Jim Watkins e patrocinado pelo grupo pró-cura Autism speaks (www.autismspeaks.org) vem acirrando os debates. O filme que mostra o cotidiano de várias crianças autistas é criticado por ativistas autistas por mostrar apenas crianças golpeando as cabeças contra a parede, se jogando no chão e se lançando no trânsito. Segundo eles, trata-se de uma visão parcial do mundo autista que exclui autistas com habilidades especiais como tocar o violino ou fazer proezas esportivas. O filme também mostra uma mãe que admite ter pensamentos assassinos e/ou suicidas na sua convivência com o inferno autístico. Alguns autistas vêm coletando assinaturas em uma petição, cujos objetivos são os seguintes: “Repudiar totalmente a noção de assassinato como uma reação aceitável ao distúrbio. Negar veementemente que a maioria dos pais de crianças autistas ou deficientes possua pensamentos assassinos. Atestar que a falsa ‘realidade’ inventada pelos discursos autistas no filme ‘Autismo todos os dias’ não reflete verdadeiramente a realidade da paternidade/maternidade de filhos autistas. Requerer um pedido público de desculpa por parte de Lauren Thierry por aumentar a ignorância acerca do autismo”. A petição intitulada ‘Autismo fala: Não fale por me’ (Autism Speaks: Don´t Speak For Me) se serve de um trocadilho que critica precisamente a associação ‘Autismo fala’ (Autism Speaks) por falar no nome dos autistas (Don´t Speak For Me), reforçando o argumento assinalado de que está sendo decidido por eles. A petição conta atualmente com quase 900 assinaturas.
Um dos pontos mais conflitantes diz respeito à terapia cognitiva ABA (Análise comportamental aplicado - Applied Behavior Analysis), que para muitos pais constitui a única terapia que permite que as crianças autistas realizem algum progresso no estabelecimento de contato visual e em certas tarefas cognitivas. Para os ativistas autistas, a terapia reprime a forma de expressão natural dos autistas. A questão é acirradamente debatida no mundo anglo-saxão, já que muitos pais estão lutando na justiça para conseguir que governos e companhias de seguros de saúde paguem pela terapia, cujo custo é muito elevado. Desse modo, os argumentos defendidos pelos movimentos da neurodiversidade de que o autismo não é uma doença e as tentativas de cura uma afronta contra os autistas podem fornecer razões para recusar o financiamento das terapias. Esse fato provoca a irritação de pais e profissionais que lutam pela implantação e custeio público das terapias. “Ao publicar repetidamente artigos que influenciam os leitores a ver o autismo como apenas uma forma diferente de ser”, acusa Kate Weintraub na mencionada carta aberta dirigida ao New York Times, “você está ajudando a influenciar uma geração de pais, professores e outros líderes da comunidade autista a negar o tratamento a crianças autistas. Isto é algo muito sério, com conseqüências muito graves. Se seu filho tem autismo severo e sua escola anuncia que a ABA não estaria mais disponível, pois se passou a considerar anti-ético ensinar crianças a parecer mais com seus pares e, ao invés disso, seriam utilizadas apenas a aceitação e a acomodação, neste caso, você não ficaria muito feliz, não mais feliz do que ficaria se tivesse um filho surdo e os implantes cocleares não estivessem mais à disposição, porque a surdez não seria mais considerada um transtorno”. O assunto chegou aos tribunais. Varias famílias canadenses entraram em 2004 em uma ação judicial argumentando que o governo deveria pagar pela terapia ABA para seus filhos por ser ‘medicamente necessária’. Trata-se do caso Auton vs. British Columbia. Michelle Dawson, ativista autista canadense, questionou a ética da terapia ao ser chamada como testemunha. Esse depoimento foi citado pela suprema corte canadense na sua decisão contra as famílias de filhos autistas. Situações como essas vêm elevando enormemente a temperatura do debate: De um lado, as famílias de autistas e suas lutas por acesso aos tratamentos e terapias comportamentais - que implicam reconhecer o autismo como uma doença (principalmente com causas genéticas e/ou cerebrais) – e para quem os movimentos de autistas com sua retórica anticura e pró neurodiversidade representam um ultraje a suas reivindicações. De outro lado, os ativistas autistas que consideram as terapias pró-cura um passo adiante na negação e intolerância da diferença e da (neuro)diversidade e na implantação de políticas eugênicas e genocidas. Vejamos estes aspectos mais pormenorizadamente.


Fronteiras disputadas: doença ou diferença?

O historiador Charles Rosenberg observa que, “entidades patológicas se tornaram atores sociais indiscutíveis, reais na medida em que temos acreditado neles e agido individualmente e coletivamente a partir dessas crenças” (2002: 240). Ele chama a atenção acerca do “poder e capacidade de penetração das entidades patológicas” e suas aparentes “estruturas neutras” (value-free frameworks) (ibid, 246). Estamos nos acostumando nas últimas décadas a negociar em público o estatuto nosológico de numerosas doenças psiquiátricas, a maioria das quais possuem uma natureza problemática. Talvez o caso mais gritante dos debates acerca da legitimidade epistemológica de uma categoria de doença psiquiátrica aconteceu no início dos anos 70 do século passado, quando a Associação de Psiquiatria Americana decidiu votar a inclusão ou não da categoria de homossexualidade por ocasião de uma revisão do DSM. Trata-se de uma doença, ou de uma escolha? E se é uma doença legitimada (com uma subseqüente base biológica), como pode ser decidido por voto o seu estatuto ontológico? (Rosenberg 2002, 2006). Os conflitos acerca do estatuto ontológico e a conseqüente legitimidade social de doenças e transtornos mentais e as decisões acerca da etiologia, diagnóstico e terapêutica têm sido endêmicos na história da psiquiatria dos últimos 150 anos (Rosenberg 2006). Embora não exista consenso acerca de numerosas doenças psiquiátricas, o fato de serem nomeadas como doenças constitui uma forma de poder e utilidade social. O diagnóstico e a eventual inclusão nos DSMs evidencia que “a presumida existência de entidades patológicas ontologicamente reais e definidamente específicas constituiu o princípio-chave que organiza quais decisões clínicas particulares poderiam ser tomadas racionalmente” (Rosenberg 2002: 239). Desta maneira, podemos compreender o anseio de que comportamentos tão (a primeira vista bizarros) como a apotemnophilia, isto é, o desejo de ter partes do corpo amputadas, seja reconhecido como um transtorno psiquiátrico, a ‘transtorno de identidade de amputado’ (amputee identity disorder), cunhado em analogia à categoria de ‘transtorno de identidade de gênero’ (gender-identity disorder) aplicada aos transexuais. Mas o que poderia resultar surpreendente é que a proposta de inclusão do “amputee identity disorder” na próxima edição do DSM não é oriunda de psiquiatras ligados aos interesses da industria farmacêutica ávida diante de uma possível ampliação do mercado de psicofármacos. São os próprios indivíduos que desejam a amputação que reivindicam a inclusão no DSM. Para eles, representa uma possibilidade de que os cirurgiões cooperem com eles e realizem as amputações. No caso particular da apotemnophilia, no qual muitos cirurgiões se recusam a efetuar as cirurgias, ser reconhecido como ‘doente’ pode apresentar vantagens que permitam aos indivíduos ter acesso aos procedimentos cirúrgicos, realizados em serviços públicos de saúde. Escolhi um exemplo que pode nos parecer bizarro para mostrar que, mesmo nesse caso (ou, talvez, precisamente nesses casos), as entidades nosológicas (especificamente transtornos psiquiátricos) estão sujeitas a negociação, e que, freqüentemente, os doentes e suas famílias abraçam os diagnósticos como uma base para estabelecer grupos de apoio e auto-ajuda e forçar políticas públicas favoráveis à pesquisa e tratamento das doenças. Ou seja, as coisas são muito mais complexas e nuançadas do que aparece em algumas simplificações grosseiras e demonizantes da psiquiatria biológica.
No caso do autismo a situação é um pouco diferente embora se trate de uma categoria psiquiátrica negociada publicamente. Mesmo reconhecida como entidade nosológica em 1980 pelo DSM-III (e a síndrome de Asperger em 1994 pelo DSM-IV), os transtornos do espetro autista vem se tornando ‘categorias problemáticas’, usando a expressão de Rosenberg (que a usa para falar de ‘gender identity disorder’, ‘attention déficit and hiperactivty disorder’, ‘social anxiety disorder’ e ‘premestrual síndrome’, entre outras). É o estatuto ontológico do autismo que está sendo disputado: doença para uns, exemplo da diversidade do cérebro humano, para outros.
O deslocamento do paradigma psicanalítico do autismo permitiu, como já foi assinalado, que pais e profissionais constituíssem associações e grupos pró-cura. Para eles, o transtorno autista é uma doença com uma etiologia orgânica (principalmente cerebral e/ou genética). A superação do modelo psicanalítico e a aproximação das neurociências desresponsabilizou e desimplicou os pais dos destinos subjetivos dos filhos e abriu o caminhou a sua organização em associações que buscam a cura do transtorno e a implantação de terapias cognitivas e comportamentais. O estatuto orgânico do autismo legitimou o movimento. Na frase feliz de Rosenberg, “legitimidade social pressupõe identidade somática” (2006: 414). Porem, o transtorno continua sendo uma categoria problemática, pois não existe consenso nem em relação à etiologia do transtorno, nem acerca da intervenção clínica mais adequada (Feinberg & Vacca, 2000).
Do ponto de vista dos ativistas autistas, as terapias constituem atentados contra a diferença e a diversidade do cérebro humano. Além disso, a possibilidade de em breve dispormos de um teste genético para detectar o risco de autismo em um feto ou embrião, pode abrir a porta para que pais tenham a opção de impedir o nascimento de um filho, mesmo com as formas mais brandas do transtorno (como é a síndrome de Asperger). Nesse sentido, Arthur Caplan, diretor do Center for Bioethics da universidade de Pennsylvania, publicou em 2005 um artigo com o provocativo título de “Você teria permitido que Bill Gates nascesse?” (Would you have allowed Bill Gates to be born?), no qual sublinha o fato freqüentemente observado que Gates apresenta muitos traços de personalidade da síndrome de Asperger, pretendendo chamar a atenção com isso para os riscos envolvidos nos testes genéticos. Obviamente o espectro do transtorno autista é muito amplo, abarcando desde os casos mais ‘de alto funcionamento’ como (presumivelmente) Bill Gates, o filósofo Ludwig Wittgenstein e o pianista Glenn Gould, até os ‘de baixo funcionamento’, crianças e adultos com retardo mental e severos comprometimentos cognitivos e funcionais. Ao meu ver, isso nos coloca diante de importantes dilemas éticos e sócio-políticos. A questão é dupla: permitirá o teste genético estabelecer as sutilezas necessárias para definir claramente em que ponto do espectro autista o feto e/ou embrião se encontra? Mas ao mesmo tempo, se se trata de um espectro, ou seja, um contínuo, qual deve ser o ponto de corte que nos justifique a dizer que até um certo ponto é aceitável o grau de comprometimento cognitivo, mas para além desse ponto se justificaria o aborto? Em poucas palavras, permitirá o teste genético diferenciar os autistas de ‘baixo’ e ‘alto’ funcionamento? Isso sem mencionar, como acredito, que, mesmo nos casos mais severos de autismo, não exista consenso ao respeito do aborto dessas crianças, como não existe mesmo em relação à síndrome de Down e outras doenças e transtornos. Para os ativistas do movimento autista, trata-se de um risco de genocídio que deve ser combatido. Abortar um feto autista seria como abortar um feto homossexual ou canhoto (caso fosse possível detectar essas características geneticamente). Os testes pré-natais constituem uma verdadeira ameaça eugênica que visa o aborto dos neurodivergentes. Dada a tecnologia, pergunta, Susanne Antonetta, autora de A mind apart. Travels in a Neurodiverse World, e diagnosticada com transtorno bipolar, “Escolheríamos apenas crianças perfeitas? Perfeitas para os olhos de quem? Nossa cultura?” (Antonetta, 2005: 92). A gravidade da situação levou a que, em 2004, ativistas do movimento entrassem com uma petição nas Nações Unidas exigindo que, diante das ameaças, fossem reconhecidos como ‘grupo social minoritário’, que merece proteção perante a ‘discriminação’ e o ‘tratamento inumano’. Eles se consideram uma minoria, uma cultura diferente com padrões de comunicação e hábitos diferentes (Nelson, 2004).
Diante dessa situação, cabe perguntar quais seriam as políticas públicas possíveis para dar conta da neurodiversidade. As políticas propostas pelos grupos pró-cura já foram salientadas: acesso e financiamento de terapias comportamentais (especificamente ABA), contingenciamento de recursos para pesquisa genética e neuroquímica do transtorno, entre outras. No caso da neurodiversidade, a situação é um pouco diferente, entrando em muitos casos em conflito com os interesses dos grupos pró-cura. Sirva como exemplo o interessante artigo de Baker (2006), que propõe distinguir entre ‘deficiências neurológicas’ e ‘neurodiversidade’. Essa discriminação permitiria desenhar políticas públicas que possibilitassem o acesso ao tratamento àqueles indivíduos que desejassem ser tratados e que garantissem aos que recusassem o tratamento o direito de fazê-lo, pois, “o autismo é para alguns um elemento fundamental da identidade, no qual não se quer que o estado interfira sem necessidade” (Baker, 2006: 27). O desafio seria distinguir entre os dois elementos, apoiando simultaneamente ambos, ou seja, estabelecer uma fronteira definida entre um e outro que fosse aceita tanto pelo movimento pró-cura e anticura. “Gerir simultaneamente ambos os aspectos da diversidade depende de esforços recompensadores e sustentadores que sustentem uma base de participação mais ampla, ao invés de uma proteção categórica a indivíduos selecionados”. (Ibid., 27). Categorias psiquiátricas possuem sempre ‘fronteiras disputadas’ - usando a feliz expressão de Rosenberg-, um estatuto ambíguo que exige a sua constante negociação pública. No campo específico da educação e da educação especial, os modelos tradicionais orientados para o modelo da deficiência tentam curar, consertar, reparar, remediar, melhorar as ‘deficiências’ das crianças. Nesses modelos, os autistas são aproximados o máximo possível de uma norma ou são ajudados a enfrentar as deficiências da melhor maneira possível. Um modelo educativo baseado na neurodiversidade, em contrapartida, “terá um profundo respeito pela diferença (e não deficiência) de cada criança”, escreve Armstrong (2005), “encontrando o melhor nicho ecológico para cada criança, no qual suas qualidades são maximizadas e seus defeitos são minimizados”. O modelo da neurodiversidade necessariamente forçará uma mudança no sistema educativo “pela clara diversidade e força da organização neurológica de suas populações de estudantes” (ibid., ênfase minha). A referência ao cérebro como critério organizador é fundamental, como veremos mais adiante.
Vale a pena ressaltar um elemento comum aos movimentos pró-cura e anticura. Apesar de se encontrarem num feroz embate, ambos os movimentos compartilham a recusa às explicações psicanalíticas culpabilizantes. O deslocamento do paradigma psicanalítico para o cerebral possibilitou a organização dos dois grupos antagônicos. Para os pais de autistas, recusar a culpa pela doença dos filhos e a denúncia dos excessos da psicanálise está na base das primeiras associações que visam, como foi ressaltado, buscar formas de cura orientadas basicamente para a terapia comportamental e os tratamentos farmacológicos. Todavia, os pais de autistas convergem com as explicações psicanalíticas em tratar o autismo como uma doença, e/ ou uma deficiência, embora se inclinem para explicações genéticas e/ou cerebrais do transtorno, que exigem tratamentos farmacológicos e comportamentais e não psicodinâmicos. Os movimentos de autistas surgem, por sua vez, como recusa da visão negativa do autismo difundida pelas explicações psicanalíticas de Kanner, Bettelheim, e outros, que focaliza na incapacidade e na deficiência. Eles, no entanto, convergem (nas suas posições mais radicais) com as explicações psicanalíticas em que as crianças autistas deveriam ser afastadas dos pais. A despeito das posições antagônicas de ambos os grupos em relação a considerar o autismo como doença a ser tratada ou diferença a ser tolerada e celebrada, a superação das explicações psicologizantes (psicanalíticas) constitui uma forma de empowerment tanto para os grupos pró-cura como anticura. A cerebralização do autismo é abraçada por ambos, embora leve a posições políticas antagônicas. Aplica-se a ambos a já citada observação de Rosenberg: “legitimidade social pressupõe identidade somática” (2006: 414). Para os movimentos de pais de autistas, a cerebralização os desculpabiliza pelo transtorno, apontando para uma causalidade concreta e objetiva que possa ser usada para reivindicar verbas públicas para a pesquisa e o tratamento de crianças autistas. Os movimentos de autistas, por sua vez, se servem das explicações cerebrais para destacar a diversidade e a singularidade das conexões cerebrais, muitas das quais são neuroatípicas ou neurodivergentes. Refletem a diversidade do cérebro humano que não pode ser tratada na polaridade normal/patológico ou doença/cura. Tolerância e direito à diferença e à diversidade tomam o cérebro como referência. Como observa Muskie, autor do mencionado site do Institute for the Study of the Neurologically Typical e diagnosticado com a síndrome de Asperger: “Minha bête noire atual consiste em ter consideradas minhas emoções como ‘rasas’. Como alguém com um conhecimento consideravelmente maior sobre minhas emoções do que os ‘especialistas’ (experts), posso declarar inequivocamente que minhas emoções não são ‘rasas’. Pode ser que amanhã eu seja descrito como ‘pouco empático’ ou serei ultrajado com um excepcionalmente ignorante método ‘de treinamento’ sendo infligido sobre crianças autistas, ou talvez haja algum novo artigo escrito por algum especialista a partir da perspectiva que a percepção neurotípica está correta e que meu cérebro é um erro genético (...) Meu cérebro é uma jóia. Eu estou espantado com a mente que tenho. Eu e minha experiência de vida não são inferiores e podem ser superiores à experiência de vida dos neurotípicos” (minha ênfase) .
Questões identitárias: ser ou ter autismo

As associações de pais de crianças autistas se negam a reconhecer no autismo uma questão de identidade. O autismo é uma doença, não um estilo de existência ou uma marca identitária. As crianças não são autistas, elas têm autismo, como escreve Keit Weintraub (2005): “O fato de que meus filhos têm uma anormalidade no desenvolvimento não significa que eu não os ame por quem eles são, como ela [Amy Harmon] insinua tão incessantemente. Eu amo meus filhos, mas eu não amo o autismo. Meus filhos não fazem parte de um grupo seleto de seres superiores denominados ‘autistas’. Eles têm autismo, uma invalidez neurológica devastadora nas suas implicações nas suas vidas, se não for tratado (...) Em outras palavras, não é mais normal ser autista do que é ter espinha bífida.” Para os ativistas autistas, em contrapartida, o transtorno remete a uma questão identitária. Autismo não é alguma coisa (uma doença) que se ‘tem’, mas algo que se ‘é’. Não é a ‘concha’ que aprisiona a criança normal. Não podemos separar o transtorno do indivíduo, e se fosse possível teríamos um indivíduo com uma identidade diferente. O autismo é “impregnante, colore cada experiência, cada sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro, todos os aspectos da existência” (Sinclair, 1993). Evidentemente, a posição no debate identitário determina a posição em relação à busca pela cura e às terapias. À medida que os pais de autistas falam de “ter” autismo e acolhem tentativas de cura e terapia, os movimentos da neurodiversidade apostam no “ser” autista e se opõem as tentativas de cura e terapias cognitivas.
Como já foi assinalado, a identidade autista é vivenciada pela comunidade autista com orgulho (e comemorada no 18 de Junho, o ‘Autistic pride day’). Alguns neurodivergentes usam o termo ‘gift’ (dom) para se referir a condições como autismo ou transtorno bipolar (Antonetta, 2005). Mesmo os autistas de ‘alto funcionamento’ que não vivenciam o transtorno como um ‘dom’, relatam freqüentemente uma sensação de ‘conforto’ quando obtiveram o diagnóstico. “Finalmente uma explicação, finalmente, uma razão para o porquê e o como” escreve John Carley, ao ser diagnosticado com a síndrome de Asperger (Shapiro, 2005). O filósofo Ian Hacking (2006) fala de um certo tipo de paz resultante do diagnóstico de autismo; e Judy Singer, que cunhou o termo ‘neurodiversidade’ remete aos ‘benefícios de uma identidade clara’ (Singer, 1999: 62) de ‘ser’ autista. A afirmação identitária é freqüentemente associada ao afastamento das explicações psicológicas e das psicoterapias. Em listas de autistas encontramos relatos recorrentes sobre o tempo (e o dinheiro) perdido em sessões psicanalíticas ou psicoterápicas. O distanciamento do paradigma psicológico e a aceitação das explicações neurológicas constituem uma forma de autoafirmação. Frente à ‘auto-consciência psicológica’ (psychological self-awareness), os autistas apostam na ‘auto-consciência neurológica’ (neurological self-awareness) (Singer, 1999) e recusam o poder da psicologia. Não é um problema de trauma ou conflito, mas de uma ‘conexão’ (wiring) cerebral diferente. Eles reclamam o direito de autodiagnóstico, e a preferência pela neurologia representa um empowerment para a cultura autista que pode tomar as decisões por si. Graças à Internet, os autistas trocam todo tipo de informações sobre o diagnóstico e demais aspectos do transtorno sem depender para isso do establishment médico.
Resulta em certa maneira paradoxal que precisamente a cerebralização do autismo esteja na base da afirmação identitária dos autistas (‘ser’ e não ‘ter’ autismo). Alem do fato de que o deslocamento do modelo psicanalítico e a aproximação das neurociências possibilitou que os pais fossem desresponsabilizados e desimplicados dos destinos subjetivos dos filhos, a biologização (e/ou neurologização) da doença mental (seja autismo, esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, entre outros) leva a um distanciamento subjetivo da doença que é tratada mais ou menos como qualquer doença física. O indivíduo é desresponsabilizado na medida em que sofre um processo de distanciamento subjetivo da doença a qual é desestigmatizada, por ser uma condição do cerebral. Pois, para as explicações psicodinâmicas, “a doença mental está na sua mente e nas suas reações emocionais a outras pessoas, é o seu ‘você’”. (Luhrmann, 2000: 6). Quando um psiquiatra de orientação biológica fala da depressão de maneira semelhante a como um cardiologista fala de uma doença cardíaca se produz um distanciamento subjetivo da doença, uma dessubjetivação. O indivíduo tem esquizofrenia, ou transtorno bipolar, em vez de ser deprimido, esquizofrênico e ou psicótico. Assim como o indivíduo pensa que é um indivíduo que tem uma doença cardíaca e não que é essa doença, no caso de doenças mentais a depressão ou psicose aparecem escritas no corpo – e mais especificamente no cérebro - nas descrições da psiquiatria biológica. As críticas feitas à psiquiatria biológica não devem impedir de reconhecer que ela trouxe a desculpabilização de pacientes e familiares pelas suas psicoses, transtornos alimentares, anorexia, autismo e esquizofrenia. Sirva como exemplo as famílias de filhos esquizofrênicos que suportam financeiramente as pesquisas de esquizofrenia que usam neuroimagem, isto é, uma abordagem cerebral da doença (Dumit, 2004). Para o paciente e seus familiares é mais fácil aceitar, por exemplo, o diagnóstico de transtorno bipolar que o de psicose maníaco depressiva. Pois, no transtorno bipolar se enfatizam os aspectos biológicos e cerebrais mais do que os psicológicos e psicodinâmicos que impunham uma marca identitária. O indivíduo não é mais psicótico maníaco-depressivo, mas tem transtorno bipolar. A doença mental como critério identitário se aplica antes a modelos psicológicos (ou psicanalíticos) e mentalistas do que a modelos fisicalistas/cerebralistas oriundos da psiquiatria biológica ou das neurociências. Não é o mesmo afirmar ‘há algo errado comigo’ do que ‘há algo errado com meu cérebro’. Ao passo que a doença mental diz respeito à identidade, o transtorno cerebral diz respeito ao corpo (cérebro). Se for um problema do cérebro, então o indivíduo não é culpado e, sobretudo, ele não é essa doença, ela não define a sua identidade. Frente à psicologização da doença mental, a cerebralização pressupõe uma dessubjetivação. Ora, no caso dos movimentos da neurodiversidade acontece exatamente o contrário, a cerebralização constitui uma marca identitária, uma identidade naturalizada, o indivíduo é autista (e não tem autismo) não pelo autismo ser uma doença mental, mas, precisamente, por que é uma ‘conexão atípica’ (atypical wiring) do cérebro. Para esses grupos, autismo, transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção, entre outros, constituem marcas identitárias, não por ser doenças mentais, mas por ser transtornos cerebrais, isto é, identidades biológicas, bioidentidades, ou, mais precisamente, neuroidentidades, que constituem a base da formação de neurossociabilidades e neurocomunidades. Os movimentos da neurodiversidade, especificamente a cultura autista, constituem exemplos de formas de subjetivação cerebrais, de formação de neuroidentidades e formas de sociabilidade e comunidade, as neurossociabilidades, tomando o cérebro como referência, como veremos.
Nesse contexto de cerebralização da identidade autista não devemos esquecer que ainda não existe consenso acerca da etiologia do autismo. Ainda que psiquiatras biológicos e neurocientistas venham procurando os últimos anos o ‘endereço cerebral’ (brain address) do transtorno (Wickelgren, 2005: 1856) e considerem o autismo um transtorno biológico, e mais especificamente cerebral (Fombone 2003; Freeman & Cronin 2002; Wing 1997) – levando alguns a considerá-lo um caso extremo do cérebro masculino normal (Baron-Cohen 2002), não existe consenso nem sobre a etiologia, nem sobre a metodologia de intervenção clínica (Feinberg & Vacca, 2000: 131; Newschaffer & Curran, 2003). Para os autistas, por sua vez, não existe dúvida, eles afirmam categoricamente a cerebralização do transtorno. Para Temple Grandin, talvez a autista mais famosa, “o autismo é um transtorno neurológico. Uma criança nasce com isso. Isto é causado por um desenvolvimento imaturo do cérebro-- isso já foi verificado em estudos de autópsias cerebrais – e não por má criação ou pelo ambiente.” (apud Blume, 1997). Ela também fez elogios entusiásticos na contracapa do livro de Edward Dolnick, Madness on the couch. Blaming the victim in the Heyday of Psychoanalysis, que constitui uma crítica feroz às explicações psicanalíticas do transtorno. A posição da comunidade autista é clara: “autismo não é nem uma deficiência física (corporal), nem uma doença mental: é uma deficiência neurológica”. (Dekker, 2006). A cerebralidade do transtorno é assumida como um fato pela comunidade autista, nunca é colocada em questão, aparecendo já no termo neuro-diversidade. Nesse aspecto eles coincidem com as associações de pais de autistas, os quais também privilegiam a etiologia cerebral e genética do transtorno. A divergência está mais do lado de considerar o autismo um transtorno cerebral ou uma diferença na ‘wiring’ cerebral. Todavia, acredito que essa preferência pelas explicações cerebrais não se reduza à aversão à psicanálise e à cultura psicológica presente em ambos os grupos. Deve ser compreendida antes no contexto da neurocultura e do paradigma do sujeito cerebral e o privilegio de formas de subjetivação cerebrais, como veremos a seguir. Harvey Blume faz uma constatação semelhante ao afirmar que o “autismo não é praticamente a única – nem de longe a principal- razão para a atual escalada da neurologia. O contrário pode ser mais próximo à verdade: a escalada da neurologia sustenta o motivo do aumento da atenção que tem sido dada ao autismo” (Ibid).
Sujeito cerebral e neurocultura
O contexto geral que permite compreender o surgimento e difusão dos movimentos de neurodiversidade é o contexto da cultura somática ou da biossociabilidade, ao qual já aludi neste texto, e mais especificamente da neurocultura e do sujeito cerebral. Na biossociabilidade a vida psíquica é descrita segundo predicados corporais. Todo um vocabulário fisicalista-reducionista é utilizado na descrição de crenças, sentimentos, desejos, volições: Os atos psicológicos têm sua origem em causas físicas e as aspirações morais do indivíduo são medidas segundo performances corporais. Como conseqüência, conceições psicológicas e internalistas de pessoa são deslocadas para a exterioridade dando lugar à constituição de identidades somáticas, as bioidentidades (Ortega, 2007).
Nesse processo de descrição da individualidade e subjetividade em termos corporais o cérebro ocupa um lugar privilegiado dando lugar à descrição de crenças, desejos, comportamentos e emoções em termos cerebrais, ou neuroquímicos, tal como encontramos, por exemplo, no romance de Jonathan Franzen As correções (The corrections). Nikolas Rose (2003) define este processo usando o termo ‘self neuroquímico’ (neurochemical self), isto é, a formação neuroquímica da pessoa. O termo “sujeito cerebral” (Vidal, 2005, Vidal & Ortega, 2006 Ehrenberg, 2004) resume adequadamente a redução da pessoa humana ao cérebro: a crença de que o cérebro é a parte do corpo necessária para sermos nós mesmos, no qual se encontra a essência do ser humano, ou seja, a identidade pessoal entendida como identidade cerebral. Indagar acerca do sujeito cerebral é tentar responder a pergunta de por que a afirmação ‘ eu sou meu cérebro’ tornou-se auto-evidente. O sujeito cerebral constitui uma figura antropológica privilegiada na biossociabilidade. Vários historiadores das neurociências ressaltam que o destaque dos conhecimentos neurocientíficos e das descrições subjetivas segundo o vocabulário dos saberes cerebrais, isto é, a cerebralização da identidade pessoal, não ocupa um lugar tão destacado na nossa cultura devido ao progresso alucinado das tecnologias neurocientíficas (e mais especificamente de imageamento cerebral), nem à importância do cérebro na localização de processos cognitivos e emocionais (Hagner & Borck, 2001). A cerebralização da subjetividade deve ser entendida no contexto da cultura das bioidentidades, na qual o chamado ‘programa forte’ das neurociências (Ehrenberg, 2004) - que, fundindo neurociência e psiquiatria, identifica conhecimento de si e conhecimento do cérebro, mente e cérebro, e transforma o cérebro em ator social - possui cada vez maior aceitação.
O sujeito cerebral dá lugar à aparição de práticas de si cerebrais, as neuroasceses, isto é, discursos e práticas de como agir sobre o cérebro para maximizar a sua performance, que levam a formação do que vou chamar de neurossociabilidades e neuroidentidades. O objetivo é a formação de ‘selves objetivos’, de ‘autoconstituição objetiva’ (objective self-fashioning), usando a expressão do antropólogo Joseph Dumit (2004) para se referir ao processo de formação de um self objetivo, ou seja, uma categoria de pessoa desenvolvida mediante conhecimento expert. É um processo duplo, por um lado, a ciência produz fatos que definem objetivamente quem somos; por outro, os indivíduos formam seus próprios modelos de self a partir dos fatos científicos. Na sociedade contemporânea é preciso levar em consideração diferentes fatores na formação de ‘selves objetivos’, tais como o papel desempenhado atualmente pela mídia, as tecnologias de visualização médica, o programa ‘forte’ das neurociências, a industria de psicofármacos, entre outros. Tampouco podemos esquecer o papel fundamental da cultura somática, na qual, como foi ressaltado, as formas de subjetivação corporais ocupam cada vez mais o lugar de formas internalistas e intimistas de construção e descrição de si, próprias de culturas mais psicológicas. Isso faz uma grande diferença, criando um contexto cultural propício para as formas de subjetivação favoráveis e a constituição de neuroidentidades, fornecendo à neurossociabilidade (que inclui os movimentos de neurodiversidade) uma visibilidade crescente.
Na cultura somática da biossociabilidade, a neurossociabilidade está ocupando cada vez um espaço maior. Encontramos por um lado todo um mercado crescente de produtos que incluem: best-sellers de auto-ajuda cerebral, softwares e programas de ‘brain-fitness’ para o computador que constituem verdadeiras ‘academias para o cérebro’ (brain gyms), vitaminas e todo tipo de suportes alimentares para aprimorar a performance cerebral (Brownlee, 2006a, 2006b; CBS, 2006; Singer, 2005; Ortega, 2006).
Por outro lado, o sujeito cerebral vem se tornando um critério biossocial de agrupamento, como podemos constatar no surgimento, entre outros, de:
a) Grupos que se reúnem para testar as performances cerebrais, como se depreende da existência de ‘clubes do cérebro’, ‘Campeonatos Mundiais de Memória’ e ‘Olimpíadas de esportes da mente’, promovidas pelo empresário Tony Buzan, criador dos mapas mentais e autor de numerosos best-sellers de auto-ajuda cerebral. Neles, os cérebros são submetidos a verdadeiras competições mentais, que incluem desde jogos mentais clássicos à exercícios para medir pensamento criativo, velocidade de leitura ou cálculos mentais e de memória.
b) Neurocomunidades como a Braingle Community , orientada para um público adolescente e que abrangem fóruns de discussão, “talk boxes’ permitindo conversas privadas, e serviço de ‘live chat’. Os neuro-usuários podem fazer observações sobre assuntos cerebrais, comentar os novos jogos, puzzles e ‘Brain Teasers’ para promover a atividade cerebral. Ao mesmo tempo, a comunidade tem acesso a todo um ‘mercado’ cerebral. Uma industria ‘neuro’ está surgindo para compras on-line que não só inclui livros, jogos, videogames, mas também camisetas, bonés, canecas, mousepads, neurocalendários entre outros, que ajudam a delinear a identidade coletiva das novas neurocomunidades. Nesse sentido, os recursos para crianças são descomunais, como podemos constatar ao digitar as palavras “neuroscience for kids’ em qualquer mecanismo de busca na internet.
c) Grupos de apoio para portadores de diferentes doenças e transtornos neurodegenerativos e seus familiares, tais como doença de Alzheimer, esquizofrenia, doença de Parkinson, esclerose múltipla, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), demência Frontotemporal (Frontotemporal Dementia – FTD), Doença de Huntington (Hungtinton Disease), entre outros. As funções e objetivos desses grupos são diferentes, atendendo também as especificidades das diferenças doenças e transtornos, contemplando atividades que vão desde palestras e troca de informação e experiências até exercícios, serviços religiosos ou ajuda psicológica. Intervenções psicossociais diversas e troca de experiências podem ser dar em encontros regulares ou por meios virtuais, como Internet, com o uso de videoconferências, comunidades no yahoo, orkut, entre outros. As associações de pais de autistas e grupos pró-cura se inserem neste contexto. Os grupos da neurodiversidade têm também elementos em comum com esses grupos no nível de organização e de sociabilidade, embora divirjam em outros aspectos, especialmente em relação à ideologia pró-cura.



Neuro-diversidade e neurociências

Acredito que esta descrição do sujeito cerebral e da neurocultura constitui o pano de fundo para compreender a cerebralidade que está na base dos movimentos da neurodiversidade. Para esses grupos, o cérebro vem se tornando um critério biossocial de agrupamento fundamental. É nesse contexto que podemos entender a própria noção de (neuro) diversidade. Se pararmos para pensar, a junção desses dois termos ‘neuro’ e ‘diversidade’ não é autoevidente. A diferença, singularidade e diversidade são colocadas do lado cerebral. Trata-se como vimos de uma naturalização, fisicalização da identidade. Mas, como o cérebro pode ser o lugar do diverso, da diferença?, podemos perguntar. As pesquisas neurocientíficas, por exemplo, na área da psiquiatria biológica (por ser a mais próxima ao autismo) não se caracterizam precisamente pela busca de regularidades e constantes neuroanatómicas e neurofisiológicas que permitam distinguir um cérebro autista, ou um cérebro deprimido ou esquizofrênico de um cérebro normal, como mostram os estudos com neuroimagem? Não se trata de localizar no cérebro as regiões responsáveis pelos mais diversos estados mentais, normais ou patológicos? Ou seja, não se considera o cérebro como o lugar da identidade, das constâncias, das regularidades? Nesse caso não existiriam termos mais adequados para pensar a diversidade, tais como psico-diversidade (entendendo ‘psico’ não em referencia a qualquer teoria psicológica ou psicanalítica, dada a aversão dos autistas a elas, mas no sentido de ‘mental’) ou ‘mind’-diversidade (Porém, em português soa estranho o termo mente-diversidade. Talvez poderíamos pensar em ‘diversidade mental’ em oposição à ‘diversidade neural’ ou neurodiversidade)?. Afinal, é do lado do mental que podemos imaginar o diverso, o múltiplo, o singular, tantas formas de vida como a imaginação, a fantasia e a criatividade consigam pensar. Do lado corporal (cerebral) o repertório de possibilidades é finito. Tomo como exemplo a seguir o caso das modificações corporais que tenho analisado em outro lugar (Ortega, 2007).
Tatuagens, piercings, cutting, brainding, implantes subcutâneos, entre outros, constituem tentativas de dar uma localização específica e corporal à identidade subjetiva. A autenticidade, realidade, identidade e autonomia pessoal são colocadas do lado corporal. O desarraigamento social e a ausência de vínculos simbólicos e rituais coletivos próprios de nossas sociedades contemporâneas, salientados por diversos sociólogos, filósofos e historiadores, conduzem o indivíduo a se retrair sobre si e fazer de seu corpo um universo em miniatura, uma verdade sobre si e um sentimento de realidade, que a sociedade não consegue mais lhe fornecer. A modificação corporal responde a um déficit identitário, constitui uma suplência de identidade, um tipo de assinatura de si pela qual o indivíduo se afirma na identidade escolhida, que difere daquelas que são atribuídas pelo olhar do outro. Pois bem, o repertório que o indivíduo dispõe para criar uma identidade corporal, naturalizada, é finito, dado pelos próprios limites de seu corpo. Daí que surjam modificações cada vez mais radicais que incluem a amputação de diversos membros corporais, como no caso já mencionado da apotemnophilia. Chegará um momento em que a superfície (ou o interior) do corpo esteja completamente ocupada por piercings e demais marcas corporias identitárias. Ao repertório limitado de identidades corporais se opõe a riqueza infinita da identidade psicológica ou mental dada pela própria imaterialidade do mental. Isso sem mencionar o engodo psíquico que supõe localizar a identidade pessoal no corpo. Se o que somos está exposto ao olhar do outro somos privados da capacidade de fingir, de dissimular, de esconder os sentimentos, as intenções, os segredos. Somos vulneráveis ao olhar do outro, mas, ao mesmo tempo, precisamos de seu olhar, de ser percebidos, senão não existimos.
O mesmo se aplica à busca da identidade e da diversidade do lado cerebral. Em primeiro lugar, vale a pena fazer uma ressalva sobre o ‘boom’ recente de teorias, práticas e produtos que exploram a ‘neuroplasticidade’, recorrente da descoberta da neurogenese em adultos. Embora a plasticidade cerebral desloque para o pólo cerebral características tais como multiplicidade, criatividade e singularidade, todavia, não acredito que a plasticidade cerebral leve a equiparar a potencialidade de possibilidades do mental com o cerebral. Ela não substitui a potencialidade de expressões subjetivas do mental. No fundo, os mais diversos estudos realizados com neuroimagem vêm corroborar esse raciocínio. A complexidade e riqueza das experiências mentais não é reduzível à simplicidade e pobreza das redes neurais ou das medidas neuroquímicas. Se, como, por exemplo, Newberg e D´aquili pretendem mostrar ao escannear o cérebro de oito budistas americanos praticantes de meditação Tibetana e de três freiras Franciscanas em oração contemplativa, que em ambos os grupos se observa aumento de atividade neural no córtex pré-frontal e diminuição de atividade no lobo parietal posterior superior (d´Aquili & Newberg, 1999; Horgan, 2003), fornecem porventura esses dados, procedentes do pólo cerebral, alguma informação importante sobre o pólo mental, para alem do fato óbvio de que (senão queremos reeditar alguma versão do dualismo clássico) toda experiência mental (inclusive as espirituais) possui correlatos cerebrais? Podemos identificar a experiência espiritual de vazio, o Nirvana dos budistas com o sentimento de comunhão com Deus das freiras? Seria ingênuo acreditarmos na identidade das duas. Obviamente, se tratam de duas experiências subjetivas completamente diferentes, correspondentes a duas visões do mundo, conceições teológicas e espirituais diversas e a contextos sócio-culturais distintos ainda que possuam o mesmo correlato neural. A riqueza e diversidade do pólo mental (espiritual) se perdem na pretensa redução ao pólo material, cerebral. Trata-se de uma tradução grosseira, simplificadora e ingênua. Parafraseando o título do livro de William James, as ‘variedades da experiência religiosa’ não são traduzíveis à monotonia e uniformidade de seus correlatos neurais. Um único mecanismo neural não pode nem poderá dar conta da totalidade e diversidade das experiências espirituais. Da mesma maneira, se pudessem ser delimitados os correlatos neurais da depressão, diria isso alguma coisa acerca da experiência singular do sujeito deprimido? Os cérebros deprimidos podem ser iguais, os sujeitos deprimidos com certeza não o são. Ou acaso é a mesma coisa a experiência do sujeito que está deprimido por que foi abandonado pela mulher, perdeu o emprego, ou pela violência e desigualdade da sociedade em que vive? Sem dúvida não, mas e se o correlato cerebral for o mesmo? Novamente encontramos a diversidade e a multiplicidade e a heterogeneidade do lado mental oposta a simplicidade, homogeneidade e uniformidade do lado cerebral. Ou vamos afirmar que é o mesmo cantar funk, música sacra ou A Internacional, ainda que do lado cerebral seja a mesma região que é ativada?
Assim caberia perguntar se, ao apostar pelo pólo cerebral para defender a diversidade e a diferença de formas de vida, não estaria o movimento da neuro-diversidade se afastando da riqueza do mundo mental, onde o que aproxima e distância os indivíduos são as visões do mundo, ideais e esperanças, compartilhadas ou não? Não estariam apostando em uma diversidade que no fundo é uma forma de homogeneidade, colocando a própria diferença do lado de uma identidade naturalizada, marcada no cérebro e, como conseqüência, de uma política da identidade? No fundo, o movimento coloca do lado do ‘neuro’ o que se costumava colocar do lado mental e social. Esse deslocamento deve ser compreendido no contexto da ideologia do sujeito cerebral em que o cérebro responde por tudo o que outrora costumávamos a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao sujeito. O cérebro vem se tornando na neurocultura o ator social privilegiado.

O ‘cérebro-músculo’ e o ‘cérebro-alma’

A cultura do sujeito cerebral nos fornece duas metáforas básicas para pensar o cérebro. Aparentemente contraditórias, as duas coabitam lado a lado em nossa cultura contemporânea. A metáfora do cérebro-músculo e do cérebro-alma, ou cérebro-mente.
A primeira opera em todo o conjunto de discursos e práticas neuroascéticas as que me referi acima. São discursos e práticas de como agir sobre o cérebro para maximizar a sua performance. Não pretendo me alongar neste ponto, pois é a segunda metáfora que nos interessa neste contexto. Vale mencionar que no contexto da neurocultura vem aparecendo um número crescente de best-sellers de auto-ajuda cerebral que prometem desenvolver determinadas regiões do cérebro, permitindo desde aumentar a performance do raciocínio e da memória, combater depressão, ansiedade, adições e compulsões diversas, até melhorar a performance sexual, atingir a felicidade ou estabelecer um contato direto com Deus. No mercado brasileiro encontramos entre outros os seguintes títulos: Superpoderes do cérebro; Como treinar o cérebro para realizar o impossível; Maximize o potencial de seu cérebro; Como desenvolver o poder da mente; O poder do cérebro. Esses best-sellers aparecem recheados de recomendações sobre exercícios cerebrais e sobre a importância do exercício físico, da dieta equilibrada e do efeito de álcool, drogas e outras toxinas no cérebro. O sujeito cerebral visa se inserir nas demandas da maximização da performance corporal da cultura corporal. Isso se mostra no uso das metáforas e analogias da fitness corporal pelos best-sellers de auto-ajuda cerebral. A própria idéia de ‘ginástica cerebral’ (brain-fitness) ou ‘neuróbica’ presente no título da maioria desses livros remete a essa analogia e nos mostra como o cérebro é tratado como o órgão, o músculo privilegiado que deve ser exercitado para maximizar a sua performance (Dennison & Dennison, 1989, 1994; Cohen & Goldsmith, 2002; Eiffert, 1999; Winter & Winter, 1987; Mark & Mark, 1991; Goldman, Klatz & Berger, 1991). O sujeito cerebral transpôs o vocabulário da fitness corporal para o cérebro. Na auto-ajuda cerebral os principais motivos da auto-ajuda tradicional aparecem em nova roupagem cientificista temperados com o jargão da cultura somática e das academias de ginástica (Ortega, 2006).
A metáfora do ‘cérebro-músculo’ convive paradoxalmente com a segunda metáfora do cérebro, a do ‘cérebro-alma’ ou ‘cérebro-mente’. Esta última é mais pertinente para os objetivos deste texto, pois permite compreender o deslocamento para o pólo ‘neuro’ de todos os predicados que outrora se situavam do pólo mental ou cultural ao qual acabo de aludir em relação à diversidade ‘neural’ dos movimentos de neurodiversidade. Embora os avanços na área de neurociências e da psicologia cognitiva considerem a alma uma relíquia, e mesmo a mente e a consciência apareçam nas versões mais radicais como um epifenômeno, um produto ou uma ilusão criada pelo cérebro, vemos em numerosos lugares e áreas de nossa cultura como o cérebro incorpora diversas características da alma e da mente imaterial. Sem pretender me alongar sobre esse aspecto, podemos mencionar os numerosos exemplos da ficção científica, seja literária ou cinematográfica, em que reaparece a idéia da alma imortal no modelo de um cérebro que é sucessivamente reimplantado em novos corpos, garantindo, desse modo, a continuidade indefinida da identidade do indivíduo. A imortalidade é caucionada pela preservação infinita do cérebro. De maneira semelhante, em um terreno entre a realidade e a ficção, encontramos o procedimento conhecido como ‘criogenia’, isto é, congelamento do corpo (ou o cérebro) após a morte para ser ‘ressuscitado’ quando os avanços biotecnológicos o permitam. Empresas como Alcor oferecem os serviços de congelamento do corpo inteiro ou apenas do cérebro. O fato de a segunda opção ser oferecida pela empresa e as pessoas optarem por ela envolve a crença de que o cérebro é a parte do corpo necessária para sustentar a identidade pessoal. Os indivíduos que se submetam ao congelamento de seus cérebros estão pressupondo que vão ressuscitar como eles mesmos, mesmo seus cérebros tendo sido transplantado em outros corpos. Esses exemplos evidenciam a metáfora do cérebro-alma. O sujeito cerebral não superou a alma, mas incorporou as suas características (imaterialidade, imortalidade) em sua configuração atual. Pois, se por um lado, diante do aumento da longevidade, o envelhecimento crescente da população e, sobretudo, de seus cérebros prevê-se um grave problema para a saúde pública devido ao incremento das doenças neurodegenerativas, tais como as doenças de Alzheimer ou Parkinson, entre outras, por outro lado, os exemplos mencionados das ficções científicas, da ‘neuropreservação’, parecem querer nos dizer que o cérebro não envelhece, não adoece, não se deteriora, não morre. A despeito de ser material, carnal, como os outros órgãos do corpo, ele incorpora a imaterialidade e imortalidade da alma. Os atributos da alma e da mente são deslocados para o cérebro. Esse deslocamento acompanha a história da neurociência e suas tentativas de localizar a alma no cérebro (Breidbach, 1997; Hagner, 1997), que levou a dotar ao último com os atributos e características do primeiro. O cérebro é desmaterializado, é tratado como se não fosse corporal. A metáfora do ‘cerebro-alma’ ou mente reaparece nas tentativas de busca de um fundamento do universalismo ético no cérebro. Vimos como a biossociabilidade leva consigo uma perda ou resignificação de laços sociais e valores que organizavam as formas de sociabilidade mais antigas. Os critérios de agrupamento tradicional foram deslocados para o corpo: saúde, performances corporais, tipos específicos de doenças tornam-se doravante organizadores da vida social e subjetiva. O investimento no corpo (e/ou no cérebro) é uma resposta à desagregação dos laços sociais, ao afastamento do outro e a perda de valores e significados coletivos que estruturavam o mundo simbólico do indivíduo. A contingência e perda das ancoras tradicionais para o self criam um sentimento de insegurança que levam à procura da realidade na marca corporal (no caso no cérebro). Quanto mais acreditamos na contingência mais temos a necessidade de recorrer a alguma coisa que se apresente como real, como permanente em um mundo de impermanência, um suporte para o self. Nessa época de fragmentação pós-moderna, o cérebro se apresenta como o último universal, a última grande narrativa após o final das grandes narrativas, um fundamento inexorável no qual basear nossas escolhas morais e comportamentais. Senão como vamos a entender a observação de Steven Pinker de que o imperativo ético se segue do “fato inegável de que todos nós somos feitos da mesma carne neural torna impossível negar nossa capacidade comum para sofrer?” (minha ênfase), Isto é, os problemas entre judeus e palestinos (o exemplo é dele) poderiam se resolver se levarmos em conta que ambos têm cérebros. Se o outro tem um cérebro como eu, então eu não posso matá-lo; “uma vez percebido que nossa consciência é um produto de nossos cérebros e que outras pessoas têm cérebros como o nosso, a negação da sentiencia em outras pessoas torna-se absurda.” (Pinker 2007: 47). Pinker não está sozinho nesta empreitada. O filósofo Josua Green afirma “poder ver o intuicionismo social em ação no cérebro” (Zimmer, 2004: 325); e o neurocientista Gazzaniga, por sua vez, na busca de uma ética universal, localiza no cérebro os centros de raciocínio moral correspondentes às diferentes abordagens éticas: a deontologia kantiana enfatizaria a região frontal do cérebro; as regiões pré-frontais, límbicas e sensoriais (sensory) seriam responsáveis pelo utilitarismo de John Stuart Mill e ação coordenada de todas as regiões pela teoria das virtudes de Aristóteles (Gazzaniga, 2005).
A idéia do cérebro como o lugar da ‘universalidade’, isto é, o requisito essencial para o reconhecimento da humanidade e dos direitos do outro, como no caso de Steven Pinker, convive com, e freqüentemente pressupõe a idéia de um ‘cérebro universal’, isto é, a existência de uma estrutura ou modelo cerebral considerado normal, ideal, e desejável que vêm sendo criticada pelos ativistas autistas. Eles acreditam que essa noção leva a tentativas de normalização cerebral; qualquer desvio requereria uma ‘cura’ que permitisse atingir a norma cerebral neurotípica. Todavia, não é apenas um fundamento para a universalidade ética, social, mental ou neural que é procurado no cérebro. Busca-se também o fundamento para o particularismo, a singularidade e a diferença ética, social e neural. Acaso não é exatamente nessa idéia que se baseiam os movimentos da neurodiversidade quando exigem tolerância e respeito diante das ‘diferenças naturais no cérebro’, da ‘riqueza e complexidade (...) do cérebro humano’ (Armstrong, 2005)? Dependendo dos mais diversos interesses éticos, sociais, políticos ou psiquiátricos recorre-se ao cérebro na busca de um embasamento fundamento universal, seja este ético, social, ou neural, que permita impor modelos de cura e normalidade para os que divergem desse padrão. Concomitantemente, o mesmo cérebro encerra o fundamento da singularidade e da diversidade. Os grupos pró- e anticura se colocam nos dois pontos do espectro, buscando quer uma estrutura ideal ‘neurotípica’ quer diferenças naturais no cérebro capazes de embasar científica e neuralmente seus objetivos políticos. Essa história não é nova como ressaltam diversos historiadores da neurociência (Hagner, 2004; Harrington, 1987). Desde o século XIX, o cérebro carrega os mais diversos significados morais, sociais, econômicos, políticos e teológicos, como se depreende da busca pela inscrição neural de criminalidade, genialidade ou loucura, que se estende desde a antropologia física e racial oitocentista - a qual buscava justificar neuralmente hierarquias e diferenças sociais e raciais -, até o escrutínio dos cérebros de Lênin, Einstein ou da terrorista alemã da RAF , Ulrike Meinhof, na procura da genialidade ou da propensão para o terror. Desde então, vem se buscando quer na ‘estrutura ideal’ ou quer nas ‘diferenças naturais’ no cérebro justificativas científicas para classificar, hierarquizar e normalizar os indivíduos, ou mais recentemente, para a defesa do direito à diferença.

Os movimentos da neurodiversidade surgiram, como já foi assinalado no início do texto, no contexto do paradigma constructivista imperante nos disability studies, segundo o qual, deficiência e doença não são fatos biológicos, mas construções sócio-culturais visando regulamentar os corpos e os cérebros (Davis, 1995). Uma posição que é compartilhada pela chamada ‘psiquiatria pós-moderna’, crítica da substituição da compreensão sócio-cultural, política e religiosa da doença mental pelo paradigma psicopatológico e neurocientífico. Ela descarta qualquer dimensão cientificista da psiquiatria que procure correlações entre transtornos mentais e lesões cerebrais (Brendel, 2006). Resulta paradoxal que, exatamente nesse modelo construtivista, a neurodiversidade organize a identidade em torno a algo tão pouco construído e tão biológico como é o cérebro. A cerebralização da identidade e da sociabilidade representa uma posição materialista que envolve uma naturalização e fisicalização extrema, nas antípodas da construção. Para o movimento da neurodiversidade, o cérebro não é uma construção social. Coexistem no movimento o impulso construtivista e a naturalização identitária. Novamente se coloca o direito à diferença do lado de predicados biológicos, de uma identidade marcada no cérebro.

Rumo a uma política identitária

Com isso, entramos no último ponto que gostaria abordar nesse texto e que constitui o maior desafio para os movimentos da neurodiversidade: a tentação da ‘política identitária’. Ao colocar o direito à diferença do lado biológico (cerebral) o movimento da neurodiversidade corre o risco de cair em uma política identitária calcada em predicados naturais, que leve a uma redução da pluralidade à identidade e que homogeneize as diferenças, suprimindo a singularidade dentro do próprio movimento. Sirva a advertência que Agnes Heller fez acerca do movimento feminista radical do perigo da homogeneização do grupo qua diferença: “Os que falam em nome das mulheres se colocam no lugar de todas as mulheres, da metade da humanidade, enquanto que as mulheres podem ter e de fato têm aspirações totalmente diferentes e imagens de si completamente divergentes; possivelmente recusam a imagem prescrita por feministas radicais”. Para dizer a verdade, nos debates entre os grupos pró-cura e o movimento autista anticura reconhecemos, no tom e nos argumentos e na pretensão de falar em nome de todos os autistas, a descrição que Heller faz dos movimentos biopolíticos. “No discurso biopolítico”, escreve a filósofa húngara, “os grupos autodefinidos determinam também as condições às contribuições dos outros. Um discurso que ‘desmascara’ outros discursos, que trata com desconfiança o diferente, não é em realidade público. Todas as raças e ambos os sexos encontram aqui sua própria verdade; e quanto mais poderosos são seus lobbys mais enfaticamente tentam proclamar sua verdade como incontestável e absoluta. As opiniões divergentes não são aceitas, e as opiniões contrárias não são ouvidas” (Ibid.).
Alguns teóricos dos ‘estudos sobre deficiência’ vêm chamando a atenção para o perigo de que a auto-estima de ser deficiente esteja relacionada com a comparação e a hostilidade com os não-deficientes (Swain & Cameron, 1999), e, frente a uma idéia de comunidade fechada, calcada em uma política identitária reducionista, propõem criar comunidades mais abertas e democráticas (Corker, 1999c). Essa autocrítica tem sido feita recentemente no interior do próprio movimento da neurodiversidade. Jim Sinclair (2005) recriminou o preconceito de certos autistas contra os neurotípicos. E a própria Judy Singer, que impulsionou e deu grande visibilidade ao movimento, reconheceu recentemente que o movimento está caminhando para o ‘lado escuro’ da política identitária com “sua eterna vitimização, infantilidade, sua demanda por amor incondicional e aceitação sem uma auto-reflexão adulta concomitante, um autocriticismo, uma medida de estoicismo e desejo para ver luz e escuro em si próprio, assim como no ‘o Outro’”.
Singer faz ao mesmo tempo uma outra crítica que é fundamental para compreender o papel da ontologia do sujeito cerebral e da neurocultura nos movimentos da neurodiversidade. A cerebralização da identidade é assumida sem questionamento pelo movimento, como vimos. A ativista australiana ressalta que a chamada revolução neurocientífica não só traz vantagens e que os autistas precisam ter uma visão mais equilibrada sobre o impacto das neurociências sobre a vida e o destino das pessoas, autistas ou não. Estamos dispostos a pagar o preço exigido por nos definirmos cerebralmente? O sujeito cerebral não sugere apenas a idéia de conexões cerebrais diferentes e atípicas, que não devem ser patologizadas nem normalizadas. Ele implica em formas de subjetivação, isto é, relações consigo e com os outros enquanto sujeitos cerebrais. Isto remete a visões reducionistas e empobrecidas da vida subjetiva e relacional, nas quais o cérebro responde por tudo o que outrora costumávamos a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao ambiente e à sociedade, com conseqüências severas em diversas esferas socioculturais e clínicas, entre elas, o perigo das políticas identitárias reducionistas e as explicações da depressão e de outros transtornos e doenças mentais em termos exclusivamente cerebrais, ignorando os fatores ambientais e sociais, fornecidas pela psiquiatria biológica aliada à indústria farmacêutica. É preciso saber se queremos pagar esse preço.

Tentei neste texto mostrar alguns dos desafios que apresentam os movimentos da neurodiversidade. Meu objetivo principal não era tomar partido a favor ou contra os grupos pró- ou anticura, pois acredito que ambos têm suas razões. Os primeiros ao criticar as políticas identitárias agressivas praticadas por ativistas radicais do movimento autista que pretendem falar em nome de todos os autistas. Os ativistas autistas são freqüentemente autistas de ‘alto funcionamento’, geralmente Aspergers, que se outorgam o direito de manifestar-se em nome de todos os autistas, o que causa irritação dos pais de filhos autistas de ‘baixo funcionamento’ com grave retardo físico. Obviamente seria hipocrisia subsumir todas as formas de autismo ao ‘alto funcionamento’, para depois dizer, que autismo é um estilo de vida. O movimento da neurodiversidade é minoritário dentro do espetro total do autismo. Muitos autistas não possuem nem a capacidade cognitiva de falar nem dizer o que pensam ou sentem quanto menos de se organizar política e comunitariamente. Os ativistas autistas, por sua vez, têm suas razões ao temer políticas igualmente agressivas que incluam testes genéticos que possibilitem abortar fetos autistas, bem como a imposição de ideais e padrões de normalidade cerebral, que redundem em terapias e obrigação de ser ‘curados’. Se o autismo é um espectro, não pode ser tratado como uma entidade nosológica fechada. Seu alcance e limites exigem uma constante negociação pública. Qualquer decisão acerca de um ponto de corte ao longo do espectro do transtorno autista será sempre arbitrária, resultado de interesses e lobbys de determinados grupos. Ou, porventura acreditamos que existem critérios objetivos que permitam estabelecer um ponto de corte no espectro a partir do qual os indivíduos possuiriam ou não uma ‘teoria da mente’ (Baron-Cohen, 1995; Frith, 1991) ou as ‘condições de selfhood’ (Glannon, 2007), e assim tomar decisões objetivas acerca da imposição de terapias ou testes genéticos (no caso dos fetos), ou que possibilitassem atribuir aos indivíduos uma autonomia e responsabilidade pelas suas ações?
Queria apenas mostrar esses impasses e embates no seio da neurocultura no qual o movimento da neurodiversidade é uma manifestação, e mostrar como uma ideologia solipsista, reducionista e cientificista - como é o sujeito cerebral - pode servir de base para a formação de identidade e de redes de sociabilidade e comunidade. Poderíamos parafrasear Foucault e afirmar que todo dispositivo de saber-poder é um mecanismo de assujeitamento mas ao mesmo tempo abre a possibilidade da resistência. O desafio do movimento da neurodiversidade oscila entre a aposta em políticas identitárias que são meros epifenômenos do sujeito cerebral ou procurar alternativas a esta ideologia simplificadora da vida subjetiva e relacional.







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Comentarios de Francisco Vázquez al texto

Querido Francisco:
He estapo leyendo tu texto con mucho interés:
1) Me ha sorprendido el volumen de información puesta al día que
tienes sobre temas como la politización de la deficiencia
(distinguiéndola de la invalidez), el movimiento de la
neurodiversidad y su aplicación al caso del autismo.
2) Estoy totalmente en consonancia con la crítica que haces a los
movimientos de la neurodiversidad, tanto en sus argumentos
epistemológicos (la absurda idea de que todo significado, por el
hecho de tener un registro cerebral, se reduce sin más a semejante
registro, negando la propia autonomía del plano de los
significados) como ético-políticos (el comunitarismo identitatio y
esencialista que lleva a excluir a los disidentes de la propia
comunidad biodiversa o neurodiversa, trátese de sordos o de
autistas como si constituyeran una subcultura). También coincido
con tu diagnóstico crítico-cultural al emplazar el movimiento de
la neurodiversidad dentro de un horizonte postmodenro que
convierte, no ya al cuerpo, sino al cerebro, en la sede´absoluto
de todo trabajo emancipatorio y de construcción de la
subjetividad. Se trata además de un cerebro soñado como si fuera
infinitamente manipulable y maleable, olvidando así su condición
carnal, esto es, finita, precaria, limitada; una raíz de nosotros
mismos, no un instrumento delante de nosotros mismos que podemos
manejar y moldear a voluntad sin límites. Aquí siguen siendo
válidas las lecciones de Merleau-Ponty sobre el apriori corporal.
Se trata por último de un cerebro identificado como lo que
individualiza a los seres humanos, lo que los escinde en cápsulas
perfectamente diferenciables.
3) Por otro lado, te confieso que cada vez me siento más próximo,
en materia de epistemología, de los planteamientos que combinan
los planteamientos foucaultianos con los de la filosofía
analítica. El construccionismo social indiferenciado me parece
totalmente falaz. Aquí sigo de cerca a gente como Ian Hacking
("¿La construcción social de qué? y John Searle, ("La Construcción
de la realidad Social"). No es lo mismo hablar de la construcción
social de la homosexualidad que de la construcción social de la
sordera o de la construcción social del autismo. "Construcción
social" no significa lo mismo, como tampoco la palabra "crecer" en
las frases: "me ha crecido el pelo", "crece mi amor por ti" o "la
inflación ha crecido el último año".No se puede -en esto sigo a mi
maestro Canguilhem- negar la pertinencia del concepto de
"anomalía" (que se refiere a una conformación que obstaculiza la
capacidad de instaurar nuevas normas por parte del organismo)
reduciéndolo al de "diferencia". Esto raya en lo grotesco. En este
sentido un gordo (o un homosexual) no es como un sordo de
nacimiento. La sordera es una anomalía; reivindicarla y como
diferencia es reivindicar una situación que limita la capacidad
del organismo para variar la instauración de normas y la
posibilidad de habitar en entornos múltiples. Negarse a su posible
curación o remedio afirmando la propia diferencia semiótica de los
sordos es hacer de la necesidad virtud; el que oye siempre puede
aprender los dos lenguajes funcionando en una gama de entornos más
variada.
3) El argumento del historiador que tú mencionas como defensor de
la neurodiversidad y que viene a decir que las entidades
patológicas por el hecho de ser construidas no son
"ontológicamente reales", es totalmente falaz. Que algo sea
construido no lo convierte en "irreal" (la Bolsa o el fútbol son
instituciones social e históricamente construidas y no por ello
ontológicamente irreales). El Everest es ontológicamente real pero
no socialmente construido. Insisto; hay que examinar en cada caso
qué significa "construcción social" y cómo en muchas realidades
constituyen casos combinados de elementos "socialmente
construidos" y "naturalmente dados". También habría que estudiar
cómo funciona en diversos contextos lingüísticos y sociales la
referencia a algo como "genéticamente definido"; a veces se
invoca a los genes como en el siglo XVI se invocaba a las
"cualidades ocultas". El hallazgo de una constelación génica
(nunca un gen) relacionada con la proclividad a algún tipo de
enfermedad, incluso en los casos de probabilidad más elevada
(corea de Huntington, v.g.) tiene siempre un carácter
probabilístico; nunca hay un determinismo sustancialista.
4) En fin, cada vez estoy más convencido (en el estudio que he
realizado con Richard Cleminson sobre los hermafroditas lo he
podido constatar" de que los "hechos" no son siempre infinitamente
maleables por el lenguaje o por las interpretaicones. Hay una
resistencia de los hechos (cuando los investigadores de los años
20-30 encontraron foliculina en la orina de los varones y
andrógeno en las hembras, acabaron reconociendo que no se podía
hablar de "hormonas sexuales" (algunos intentaron reinterpretar el
hecho diciendo que en esos casos se trataba de homosexuales, pero
tuvieron que acabar cediendo). Creo que el realismo, o al menos
ciertas versiones del realismo en epistemología son perfectamente
compatibles con planteamientos foucaultianos.
Bueno, esta reflexión constituye en realidad un refuerzo -muy
esquemática y vagamente presentado- a tus argumentos contra el
movimiento de la neurodiversidad y el comunitarismo identitario de
los "deficientes". Éste, siendo sin duda interesante y muy
sintomático de nuestro momento, me parece inquietante y engañoso.
Un fuerte abrazo. Paco

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